Como é bom quem fez História, manifestar a sua opinião muitos anos depois. E o que leio hoje no portal UOL na entrevista com o mestre Delfim Neto.
Folha - Na sua opinião, o que levou ao golpe de
1964?
Antonio Delfim Neto - O Brasil estava uma balbúrdia tão grande que
era claro que alguma coisa ia acontecer. Havia uma desorganização total,
passeatas na rua, mentiras de toda a natureza, boatos. O Jango abandonou o
governo. Essa é que é a verdade. Não foi uma surpresa o que aconteceu. As
instituições todas estavam ameaçadas, sob enorme risco. Nem sei se o risco era
verdadeiro ou não, é que o governo era uma balbúrdia.
Onde o senhor estava no dia 31/03/64?
Eu estava indo para a escola [Faculdade de Economia da USP] de manhã. Estávamos
vivendo um momento muito difícil, uma agonia completa, uma desorganização muito
grande, mas eu fiquei surpreendido. Você não sabia o que ia acontecer.
E depois do golpe?
As coisas ficaram normais. Foi cassado o Adhemar [de Barros, governador de São
Paulo]. E o Laudo Natel, o vice-governador que foi empossado, me convidou para
ser secretário da Fazenda. Eu gostei e fiquei. Isso foi em 1966. Fiquei até
março de 1967, quando recebi uma carta do presidente Costa e Silva me
convidando para ser ministro.
Eu tinha conhecido o presidente Costa e Silva. Ele estava se preparando para
assumir e estava ouvindo algumas pessoas e pediu para o [Rui] Gomes de Almeida
(ex-presidente da Associação Comercial do Rio) um nome para falar sobre
agricultura no Brasil.
Naquele tempo, agricultura era café. E como eu tinha um trabalho sobre café,
ele indicou meu nome. Fui lá, fiz uma palestra para ele numa manhã. Terminou,
fui embora e nunca mais conversamos.
Qual foi sua reação quando recebeu o convite?
Aceitar. Nós tínhamos trabalhado toda a vida na universidade sobre
desenvolvimento econômico. Então eu aceitei.
Havia algum tipo de condição?
Nenhum. No dia seguinte à carta, fui fazer uma visita para agradecer.
E qual era a situação econômica da época?
A situação econômica estava caminhando. O trabalho do [Otávio Gouveia de]
Bulhões (ex-ministro da Fazenda) e do [Roberto] Campos (ex-ministro do
Planejamento) foi muito bom. Fizeram um trabalho muito bom de arrumação.
Criaram o mecanismo de correção monetária, o FGTS, o BNH. Você tinha na verdade
uma grande modernização da economia. Mas tinha grandes problemas também. O
comércio exterior era um problema sério.
Eles também criaram incentivos para a exportação?
Não. Tinha um sistema de cambio fixo, muito inconveniente porque à medida que
você tem inflação, seu câmbio real vai caindo. Quando em 68, nós introduzimos o
"crawling peg", era um sistema cambial em que você corrigia o câmbio
praticamente toda semana, usando uma regra que era a diferença entre a inflação
americana e a inflação brasileira. Isso deu um grande estímulo ao setor
exportador.
O programa que apresentei para o presidente Costa e Silva era de que nós iríamos
fazer crescer a participação de outros produtos, de forma que café não fosse
mais câmbio.
Em 1966, 1967, café era câmbio. Essa era uma frase do velho [Eugênio] Gudin
(ex-ministro da Fazenda) e é verdade. Cerca de 60%, 70% da receita cambial era
café.
De forma que você passou praticamente 10 anos não cobrando nenhum imposto sobre
a exportação. O que é o correto porque o imposto tem de ser cobrado no destino.
Por que vocês reverteram a decisão do governo
Castelo de dar independência ao Banco Central?
Você estava com uma recessão profunda, um desemprego terrível e o Banco Central
insistia em fazer uma política econômica restritiva com o seguinte objetivo:
mudar a expectativa inflacionária. Tudo isso estava certo. Só que o custo disso
era uma barbaridade. Então foi isso que acabou com a tal independência do Banco
Central.
Só que foi uma boa coisa. O Banco Central não tem de ser independente, tem de
ser autônomo, tem de prestar conta à autoridade que a urna elegeu, ou que está
no poder. Tem de receber uma missão e cumprir com autonomia.
Tanto é verdade que mudou a política e de um crescimento negativo, de quase
zero, você teve uma expansão enorme.
A que o senhor atribui o chamado milagre econômico?
Nunca houve milagre. Milagre é efeito sem causa. O crescimento do Brasil
naquele período foi consequência do trabalho dos brasileiros, basicamente da
grande arrumação que houve no setor econômico, produzido no governo Castelo
Branco.
Você teve uma enorme arrumação das finanças públicas, você teve uma redução da
taxa de inflação. O Brasil estava falido, essa é que é a verdade. De forma que
você criou uma base para que os brasileiros pudessem trabalhar muito mais
ativamente.
A nova política do Costa e Silva cumpriu a função
de ganhar credibilidade em um momento em que a oposição ao regime tinha sido
muito forte?
A credibilidade foi ganha. Você ganha credibilidade quando você cumpre a
palavra que você dá. Então, os empresários sabiam que o que tinha sido
prometido ia acontecer.
E o aumento da concentração de renda incomodava?
A distribuição de renda incomoda porque, no fundo, o homem tem alguns desejos,
alguns valores que são fundamentais. Um deles é a liberdade de iniciativa. A
segunda é que ele quer uma relativa igualdade. E a terceira é que uma sociedade
razoável precisa ter igualdade de oportunidades. O que significa que todos têm
de partir do mesmo ponto em uma sociedade competitiva. Isso significa, no
fundo, educação e saúde, universais e gratuitas, que é o que está na
Constituição na verdade.
Então, a desigualdade, ela incomoda. Como você não podia atacar outra coisa, o
processo político transformou a desigualdade numa coisa muito mais
significativa porque todos estavam melhorando. Todos melhoraram, só que uns
melhoraram mais do que os outros e a distância entre nós estava crescendo. O
que não é uma coisa agradável.
Havia uma cobrança nesse sentido?
Ah sim, o que se poderia fazer era aumentar enormemente a oferta de gente que
tinha o beneficio da educação, principalmente os de universidade. E isso foi
feito. Você teve um aumento dramático de vagas nas universidades. Mas isso não
produz efeito instantâneo.
Por outro lado o ensino básico foi deixado de lado?
O ensino básico foi deixado de lado. Acho que aí houve um erro. Na verdade,
acho que, desde o Império, nós deixamos o ensino básico na mão da prefeitura.
Isso foi um erro mortal. As prefeituras nunca se comoveram com o ensino básico.
Houve um grande esforço de alfabetização com o Mobral, que o Mário Henrique
Simonsen dirigia. Mas a gente descobriu depois que o alfabetizado virava
analfabeto tão logo terminava o curso de alfabetização. Como ele não lia coisa
nenhuma, só ouvia rádio, seis meses depois ele era incapaz de ler de novo.
Há críticas de que quando o senhor deixou o governo
Costa e Silva já se acumulavam desequilíbrios, como pressões inflacionárias.
Quais foram os fatores que levaram o país a quebrar após os choques do
petróleo?
Em 1972, eu estava em Roma numa reunião do Fundo (Fundo Monetário
Internacional). E o Giscard D´Estaing que era o ministro de finanças da França,
tinha ficado muito amigo do Brasil. E ele me disse: olha Delfim, os árabes
estão preparando um cartel. Eles vão elevar o preço do petróleo a US$ 6. Nós
pagávamos US$ 1,20 o barril.
Quando voltei para o Brasil, comuniquei isso ao presidente, o presidente
convocou uma reunião. Nossa proposta, minha e do [Antonio] Dias Leite
(ex-ministro de energia) era: vamos abrir a exploração de petróleo. Vamos fazer
contrato de exploração de petróleo com empresas privadas, que era para acelerar
o processo.
O Geisel se opôs dramaticamente. Quem quebrou o Brasil foi o Geisel. O Geisel
era o presidente da Petrobras. A Petrobras passou 20 anos produzindo 120 mil
barris por dia. Quando houve a crise do petróleo, as reservas eram praticamente
iguais a um ano de exportação, não tinha dívida. A dívida foi feita no governo
Geisel.
O Geisel, na verdade, era o portador da verdade. O Geisel sempre tinha a
verdade pronta.
Como foi seu conflito com o economista Mario
Henrique Simonsen?
Nunca houve conflito com o Simonsen. Isso é uma tolice. Uma invenção. Primeiro,
o Simonsen foi embora porque quis. O Simonsen tinha consciência clara de que o
Brasil tinha quebrado. Tanto que ele não entregou o orçamento. Ele foi embora
em agosto sem briga nenhuma.
Vou lhe contar mais. O Figueiredo soube que o Simonsen tinha ido embora quando
contaram para ele que o Simonsen estava na praia tomando banho.
O quão importante foi o apoio dos empresários para
o regime?
Na verdade, como o Brasil crescia, os empresários estavam satisfeitos. Não só
os empresários. O Brasil estava satisfeito. Essa é que é a verdade. O governo
criou condições amigáveis para o funcionamento de uma economia de mercado. O
sujeito sabia o seguinte: palavra empenhada era palavra cumprida.
Como o senhor via a questão da repressão durante o
governo militar?
No governo você não tinha a menor informação. Você tinha uma separação completa
entre o governo e as instituições, as forças armadas. Nunca teve nenhuma
interferência. Na verdade, nós víamos nos jornais alguma coisa.
Uma vez eu perguntei ao presidente Médici e ele disse: não, não há.
Ele me disse: "é uma guerra, Delfim. Mas não há tortura".
Tortura é uma coisa deplorável. Quando o sujeito está sob a guarda do Estado é
que ele tem de ser protegido.
Mas em 1970 os que estavam dispostos para a guerra
já não estavam todos mortos?
Não sei se estava todo mundo morto. É outra coisa. Hoje estamos longe. Precisa
ver como eram as coisas. Seguramente, não tem um lado só. O importante é: o
governo nunca teve a menor interferência militar. Nunca. Desde o começo, o
governo tentou preservar as instituições de mercado. Não era por ideologia. Era
por pragmatismo. Porque não tem como você construir de novo uma sociedade
democrática sem que o mercado esteja funcionando razoavelmente bem.