quarta-feira, 30 de abril de 2014

Capitalismo.

Leio hoje na FOLHA artigo do Professor Delfim Netto elogiando a mais nova sensação do mundo econômico nos últimos dias: o livro do Thomas Piketty. 

A Folha prestou mais um grande serviço traduzindo e publicando na semana passada (26/4) longa e excelente resenha assinada por um competente provocador, o economista Paul Krugman, de um livro destinado a ser um clássico. Trata-se de "Le Capital au XXIe Siècle" (o capital no século 21), de Thomas Piketty, agora traduzido para o inglês. Krugman acredita que ele vai mudar duas coisas: como pensamos a sociedade e como fazemos teoria econômica.

Piketty está nos EUA, numa espécie de "road show" de seu livro, em que expõe a indecente e quase inacreditável concentração da renda e da riqueza do 1% (e do 0,1%) dos americanos mais ricos. Num auditório lotado, foi sabatinado e aplaudido por dois Prêmios Nobel: Joseph Stiglitz e o próprio Krugman. Como de costume, a esquerda apressada viu nisso o espectro de Marx, e a direita retardada, apenas o resultado do mérito!

Os números de Piketty sugerem que o "capitalismo competitivo" está dando lugar a um "capitalismo patrimonialista". É importante insistir que ele rejeita toda grande história com suas leis determinísticas. A concentração da renda é, basicamente, resultado de decisões do sistema político. Em palavras que não são de Piketty, o processo civilizatório depende de um jogo paciente e dialético entre duas instituições fundamentais: a urna (em que cada cidadão tem apenas o seu voto) e o mercado (no qual cada cidadão tem votos proporcionais à sua riqueza), que exige que elas sejam independentes entre si, o que não é um problema trivial. Se o mercado se apropria da urna, o processo civilizatório entra em estagnação ou em regressão. Se a urna se apropria do mercado, temos o populismo, que termina no autoritarismo.

Nos EUA, Piketty afirmou: "Acredito na propriedade privada, mas o capitalismo e o mercado devem ser escravos da democracia, e não o oposto". Ao contrário do que pensam alguns economistas, o amadurecimento do capitalismo não leva, necessariamente, à maior igualdade ou à maior liberdade de iniciativa, duas componentes essenciais do processo civilizatório.

Não é trivial porque o controle político tem, por natureza, de procurar sua perpetuação e reprodução. Estamos diante de um problema que só pode ser resolvido por uma profunda reforma institucional. Por exemplo, o Senado, que é mais facilmente capturado pelo "mercado", deve ter apenas o poder revisor para equilibrar a Federação. O senador não deve ter iniciativa legislativa e, muito menos, suplente. E o deputado deve ser escolhido por uma forma de eleição distrital, para que o custo de campanha seja muito menor e visível aos eleitores.


Esperemos que alguma editora enfrente a tarefa de traduzir e publicar o livro de Piketty.

sábado, 5 de abril de 2014

A revisão histórica de Delfim Netto.

Como é bom quem fez História, manifestar a sua opinião muitos anos depois. E o que leio hoje no portal UOL na entrevista com o mestre Delfim Neto. 

Folha - Na sua opinião, o que levou ao golpe de 1964?
Antonio Delfim Neto - O Brasil estava uma balbúrdia tão grande que era claro que alguma coisa ia acontecer. Havia uma desorganização total, passeatas na rua, mentiras de toda a natureza, boatos. O Jango abandonou o governo. Essa é que é a verdade. Não foi uma surpresa o que aconteceu. As instituições todas estavam ameaçadas, sob enorme risco. Nem sei se o risco era verdadeiro ou não, é que o governo era uma balbúrdia.

Onde o senhor estava no dia 31/03/64?
Eu estava indo para a escola [Faculdade de Economia da USP] de manhã. Estávamos vivendo um momento muito difícil, uma agonia completa, uma desorganização muito grande, mas eu fiquei surpreendido. Você não sabia o que ia acontecer.

E depois do golpe?
As coisas ficaram normais. Foi cassado o Adhemar [de Barros, governador de São Paulo]. E o Laudo Natel, o vice-governador que foi empossado, me convidou para ser secretário da Fazenda. Eu gostei e fiquei. Isso foi em 1966. Fiquei até março de 1967, quando recebi uma carta do presidente Costa e Silva me convidando para ser ministro.
Eu tinha conhecido o presidente Costa e Silva. Ele estava se preparando para assumir e estava ouvindo algumas pessoas e pediu para o [Rui] Gomes de Almeida (ex-presidente da Associação Comercial do Rio) um nome para falar sobre agricultura no Brasil.
Naquele tempo, agricultura era café. E como eu tinha um trabalho sobre café, ele indicou meu nome. Fui lá, fiz uma palestra para ele numa manhã. Terminou, fui embora e nunca mais conversamos.

Qual foi sua reação quando recebeu o convite?
Aceitar. Nós tínhamos trabalhado toda a vida na universidade sobre desenvolvimento econômico. Então eu aceitei.

Havia algum tipo de condição?
Nenhum. No dia seguinte à carta, fui fazer uma visita para agradecer.

E qual era a situação econômica da época?
A situação econômica estava caminhando. O trabalho do [Otávio Gouveia de] Bulhões (ex-ministro da Fazenda) e do [Roberto] Campos (ex-ministro do Planejamento) foi muito bom. Fizeram um trabalho muito bom de arrumação. Criaram o mecanismo de correção monetária, o FGTS, o BNH. Você tinha na verdade uma grande modernização da economia. Mas tinha grandes problemas também. O comércio exterior era um problema sério.

Eles também criaram incentivos para a exportação?
Não. Tinha um sistema de cambio fixo, muito inconveniente porque à medida que você tem inflação, seu câmbio real vai caindo. Quando em 68, nós introduzimos o "crawling peg", era um sistema cambial em que você corrigia o câmbio praticamente toda semana, usando uma regra que era a diferença entre a inflação americana e a inflação brasileira. Isso deu um grande estímulo ao setor exportador.
O programa que apresentei para o presidente Costa e Silva era de que nós iríamos fazer crescer a participação de outros produtos, de forma que café não fosse mais câmbio.
Em 1966, 1967, café era câmbio. Essa era uma frase do velho [Eugênio] Gudin (ex-ministro da Fazenda) e é verdade. Cerca de 60%, 70% da receita cambial era café.
De forma que você passou praticamente 10 anos não cobrando nenhum imposto sobre a exportação. O que é o correto porque o imposto tem de ser cobrado no destino.

Por que vocês reverteram a decisão do governo Castelo de dar independência ao Banco Central?
Você estava com uma recessão profunda, um desemprego terrível e o Banco Central insistia em fazer uma política econômica restritiva com o seguinte objetivo: mudar a expectativa inflacionária. Tudo isso estava certo. Só que o custo disso era uma barbaridade. Então foi isso que acabou com a tal independência do Banco Central.
Só que foi uma boa coisa. O Banco Central não tem de ser independente, tem de ser autônomo, tem de prestar conta à autoridade que a urna elegeu, ou que está no poder. Tem de receber uma missão e cumprir com autonomia.
Tanto é verdade que mudou a política e de um crescimento negativo, de quase zero, você teve uma expansão enorme.

A que o senhor atribui o chamado milagre econômico?
Nunca houve milagre. Milagre é efeito sem causa. O crescimento do Brasil naquele período foi consequência do trabalho dos brasileiros, basicamente da grande arrumação que houve no setor econômico, produzido no governo Castelo Branco.
Você teve uma enorme arrumação das finanças públicas, você teve uma redução da taxa de inflação. O Brasil estava falido, essa é que é a verdade. De forma que você criou uma base para que os brasileiros pudessem trabalhar muito mais ativamente.

A nova política do Costa e Silva cumpriu a função de ganhar credibilidade em um momento em que a oposição ao regime tinha sido muito forte?
A credibilidade foi ganha. Você ganha credibilidade quando você cumpre a palavra que você dá. Então, os empresários sabiam que o que tinha sido prometido ia acontecer.

E o aumento da concentração de renda incomodava?
A distribuição de renda incomoda porque, no fundo, o homem tem alguns desejos, alguns valores que são fundamentais. Um deles é a liberdade de iniciativa. A segunda é que ele quer uma relativa igualdade. E a terceira é que uma sociedade razoável precisa ter igualdade de oportunidades. O que significa que todos têm de partir do mesmo ponto em uma sociedade competitiva. Isso significa, no fundo, educação e saúde, universais e gratuitas, que é o que está na Constituição na verdade.
Então, a desigualdade, ela incomoda. Como você não podia atacar outra coisa, o processo político transformou a desigualdade numa coisa muito mais significativa porque todos estavam melhorando. Todos melhoraram, só que uns melhoraram mais do que os outros e a distância entre nós estava crescendo. O que não é uma coisa agradável.

Havia uma cobrança nesse sentido?
Ah sim, o que se poderia fazer era aumentar enormemente a oferta de gente que tinha o beneficio da educação, principalmente os de universidade. E isso foi feito. Você teve um aumento dramático de vagas nas universidades. Mas isso não produz efeito instantâneo.

Por outro lado o ensino básico foi deixado de lado?
O ensino básico foi deixado de lado. Acho que aí houve um erro. Na verdade, acho que, desde o Império, nós deixamos o ensino básico na mão da prefeitura. Isso foi um erro mortal. As prefeituras nunca se comoveram com o ensino básico.
Houve um grande esforço de alfabetização com o Mobral, que o Mário Henrique Simonsen dirigia. Mas a gente descobriu depois que o alfabetizado virava analfabeto tão logo terminava o curso de alfabetização. Como ele não lia coisa nenhuma, só ouvia rádio, seis meses depois ele era incapaz de ler de novo.

Há críticas de que quando o senhor deixou o governo Costa e Silva já se acumulavam desequilíbrios, como pressões inflacionárias. Quais foram os fatores que levaram o país a quebrar após os choques do petróleo?
Em 1972, eu estava em Roma numa reunião do Fundo (Fundo Monetário Internacional). E o Giscard D´Estaing que era o ministro de finanças da França, tinha ficado muito amigo do Brasil. E ele me disse: olha Delfim, os árabes estão preparando um cartel. Eles vão elevar o preço do petróleo a US$ 6. Nós pagávamos US$ 1,20 o barril.
Quando voltei para o Brasil, comuniquei isso ao presidente, o presidente convocou uma reunião. Nossa proposta, minha e do [Antonio] Dias Leite (ex-ministro de energia) era: vamos abrir a exploração de petróleo. Vamos fazer contrato de exploração de petróleo com empresas privadas, que era para acelerar o processo.
O Geisel se opôs dramaticamente. Quem quebrou o Brasil foi o Geisel. O Geisel era o presidente da Petrobras. A Petrobras passou 20 anos produzindo 120 mil barris por dia. Quando houve a crise do petróleo, as reservas eram praticamente iguais a um ano de exportação, não tinha dívida. A dívida foi feita no governo Geisel.
O Geisel, na verdade, era o portador da verdade. O Geisel sempre tinha a verdade pronta.

Como foi seu conflito com o economista Mario Henrique Simonsen?
Nunca houve conflito com o Simonsen. Isso é uma tolice. Uma invenção. Primeiro, o Simonsen foi embora porque quis. O Simonsen tinha consciência clara de que o Brasil tinha quebrado. Tanto que ele não entregou o orçamento. Ele foi embora em agosto sem briga nenhuma.
Vou lhe contar mais. O Figueiredo soube que o Simonsen tinha ido embora quando contaram para ele que o Simonsen estava na praia tomando banho.

O quão importante foi o apoio dos empresários para o regime?
Na verdade, como o Brasil crescia, os empresários estavam satisfeitos. Não só os empresários. O Brasil estava satisfeito. Essa é que é a verdade. O governo criou condições amigáveis para o funcionamento de uma economia de mercado. O sujeito sabia o seguinte: palavra empenhada era palavra cumprida.

Como o senhor via a questão da repressão durante o governo militar?
No governo você não tinha a menor informação. Você tinha uma separação completa entre o governo e as instituições, as forças armadas. Nunca teve nenhuma interferência. Na verdade, nós víamos nos jornais alguma coisa.
Uma vez eu perguntei ao presidente Médici e ele disse: não, não há.
Ele me disse: "é uma guerra, Delfim. Mas não há tortura".
Tortura é uma coisa deplorável. Quando o sujeito está sob a guarda do Estado é que ele tem de ser protegido.


Mas em 1970 os que estavam dispostos para a guerra já não estavam todos mortos?
Não sei se estava todo mundo morto. É outra coisa. Hoje estamos longe. Precisa ver como eram as coisas. Seguramente, não tem um lado só. O importante é: o governo nunca teve a menor interferência militar. Nunca. Desde o começo, o governo tentou preservar as instituições de mercado. Não era por ideologia. Era por pragmatismo. Porque não tem como você construir de novo uma sociedade democrática sem que o mercado esteja funcionando razoavelmente bem. 

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