Para reflexão neste domingo o artigo quinzenal do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
Eu, como boa parte dos leitores de jornal, nem
aguento mais ler as notícias que entremeiam política com corrupção. É um
sem-fim de escândalos. Algumas vezes, mesmo sem que haja indícios firmes, os
nomes dos políticos aparecem enlameados. Pior, de tantos casos com provas
veementes de envolvimento em “malfeitos”, basta citar alguém para que o leitor
se convença de imediato de sua culpabilidade. A sociedade já não tem mais
dúvidas: se há fumaça, há fogo.
Não escrevo isso para negar responsabilidade
de alguém especificamente, nem muito menos para amenizar eventuais culpas dos
que se envolveram em escândalos, nem tampouco para desacreditar de antemão as
denúncias.
Os escândalos jorram em abundância, não dá
para tapar o sol com a peneira. O da Petrobras é o mais simbólico, dado o
apreço que todos temos pelo que a companhia fez para o Brasil. Escrevo porque
os escândalos que vêm aparecendo numa onda crescente são sintomas de algo mais
grave: é o próprio sistema político atual que está em causa, notadamente suas
práticas eleitorais e partidárias.
Nenhum governo pode funcionar na normalidade
quando atado a um sistema político que permitiu a criação de mais de 30
partidos, dos quais 20 e poucos com assento no Congresso.
A criação, pelo governo atual, de 39
ministérios para atender as demandas dos partidos é prova disso e, ao mesmo
tempo, é garantia de insucesso administrativo e da conivência com práticas de
corrupção, apesar da resistência a essas práticas por alguns membros do
governo.
Não quero atirar a primeira pedra, mesmo
porque muitas já foram lançadas. Não é de hoje que as coisas funcionam dessa
maneira. Mas a contaminação da vida político-administrativa foi se agravando
até chegarmos ao ponto a que chegamos.
Se, no passado, nosso sistema de governo foi
chamado de “presidencialismo de coalizão”, agora ele é apenas um
“presidencialismo de cooptação”. Eu nunca entendi a razão pela qual o governo
Lula fez questão de formar uma maioria tão grande e pagou o preço do mensalão.
Ou melhor, posso entendê-la: é porque o PT tem vocação de hegemonia. Não vê a
política como um jogo de diversidade no qual as maiorias se compõem para fins
específicos, mas sem a pretensão de absorver a vida política nacional sob um
comando centralizado.
Meu próprio governo precisou formar maiorias.
Mas havia um objetivo político claro: precisávamos de três quintos da Câmara e
do Senado para aprovar reformas constitucionais necessárias à modernização do
país.
Ora, os governos que me sucederam não
reformaram nada nem precisaram de tal maioria para aprovar emendas
constitucionais. Deixaram-se levar pela dinâmica dos interesses partidários.
Não só do partido hegemônico no governo, o PT, nem dos maiores, como o PMDB,
mas de qualquer agregação de 20, 30 ou 40 parlamentares, às vezes menos, que,
para participar da “base de apoio”, organizam-se numa sigla e pleiteiam
participação no governo: um ministério, se possível; se não, uma diretoria de
empresa estatal ou uma repartição pública importante. Daí serem precisos 39
ministérios para dar cabida a tantos aderentes. No México do PRI, dizia-se que
fora do orçamento não havia salvação...
A raiz desse sistema se encontra nas regras
eleitorais que levam os partidos a apresentarem uma lista enorme de candidatos
em cada estado, para, nelas, o eleitor escolher seu preferido, sem saber bem
quem são ou que significado político-partidário têm. Logo depois, nem se lembra
em quem votou. A isso se acrescenta a liberalidade de nossa Constituição, que
assegura ampla liberdade para a formação de partidos.
Por isso, não se podem obter melhorias nessas
regras por intermédio da legislação ordinária. Algumas dessas melhorias foram
aprovadas pelos parlamentares. Por exemplo, a exigência de uma proporção mínima
de votos em certo número de estados para a autorização do funcionamento dos
partidos no Congresso.
Ou a proibição de coligações nas eleições
proporcionais, por meio das quais se elegem deputados de um partido coligado
aproveitando a sobra de votos de outro partido. Ambas foram recusadas, por
inconstitucionais, pelo Supremo Tribunal Federal.
Com o número absurdo de partidos (a maior
parte deles meras siglas sem programa, organização ou militância), forma-se, a
cada eleição, uma colcha de retalhos no Congresso, em que mesmo os maiores
partidos não têm mais do que um pedaço pequeno da representação total.
Até a segunda eleição de Lula, os presidentes
se elegiam apoiados em uma coalizão de partidos e logo tinham de ampliá-la para
ter a maioria no Congresso.
De lá para cá, a coalizão eleitoral passou a
assegurar maioria parlamentar. Mas, por vocação do PT à hegemonia, o sistema
degenerou no que chamo de “presidencialismo de cooptação”. E deu no que deu: um
festival de incoerências políticas e portas abertas à cumplicidade diante da
corrupção.
Mudar o sistema atual é uma responsabilidade
coletiva. Repito o que disse, em outra oportunidade, a todos os que exerceram
ou exercem a Presidência: por que não assumimos nossas responsabilidades, por mais
diversa que tenha sido nossa parcela individual no processo que nos levou a tal
situação, e nos propomos a fazer conjuntamente o que nossos partidos, por suas
impossibilidades e por seus interesses, não querem fazer: mudar o sistema? Sei
que se trata de um grito um tanto ingênuo, pedir grandeza. A visão de curto
prazo encolhe o horizonte para o hoje e deixa o amanhã distante. Ainda assim,
sem um pouco de quixotismo, nada muda.
Se, de fato, queremos sair do lodaçal que
afoga a política e conservar a democracia que tanto custou ao povo conquistar,
vamos esperar que uma crise maior destrua a crença em tudo e a mudança seja
feita não pelo consenso democrático, mas pela vontade férrea de algum salvador
da pátria?