Affonso Celso Pastore*, O Estado de S.Paulo
10 de outubro de 2021 | 04h00
Intercalado por duas recessões – na transição de FHC para Lula e na crise internacional de 2008/09 –, o crescimento econômico brasileiro entre 2002 e 2011 beneficiou-se de uma “bonança externa”. Fomos favorecidos pela elevação dos preços das commodities, decorrente de taxas de crescimento de dois dígitos da China, e pelo contínuo enfraquecimento do dólar. Apesar dos ganhos persistentes de relações de troca, a aceleração do crescimento brasileiro logo conduziu ao aumento de importações e a déficits nas contas correntes. Contudo, a mesma expansão de liquidez que levou ao enfraquecimento do dólar estimulou ingressos de capitais grandes o suficiente para financiar os déficits e aumentar as reservas.
Algo semelhante, porém em proporção muito menor, ocorreu na reação mundial à pandemia. A rápida recuperação da China levou a novo aumento de preços de commodities, elevando as exportações brasileiras e contribuindo para nossa recuperação. Contudo, nosso elevado risco fiscal impediu que, a exemplo do ocorrido com a grande maioria dos demais países, o real se valorizasse em resposta ao enfraquecimento do dólar. Seu nível persistentemente depreciado e volátil, somado ao forte estímulo monetário proporcionado pelo Banco Central, provocou o aumento da inflação, obrigando a adoção de uma política monetária “suficientemente restritiva”. A consequência será uma taxa de crescimento medíocre em 2022.
Infelizmente, deste ponto em diante não poderemos mais contar com a contribuição da China. Em abril de 2020, Rogoff e Yang (Peak China Housing, NBER) revelaram que a participação da construção civil e dos serviços a ela relacionados, na China, atinge 29% do PIB. A oferta de habitações cresceu tanto, que já elevou a disponibilidade de imóveis, medida em metros quadrados por habitante, acima dos níveis existentes em países bem mais ricos, como a Alemanha e a França. Ao super investir no setor imobiliário, a China acelerou o crescimento do PIB, mas desperdiçou recursos, e estima-se que hoje haja edifícios vazios capazes de acomodar 30 milhões de famílias.
O acúmulo de dívidas pelas empresas de construção as expôs ao mesmo risco que culminou na quebra da Evergrande. Como a China possui US$ 3 trilhões de reservas, e o governo tem enorme capacidade de usar recursos fiscais para cobrir os prejuízos, é pouco provável que ocorra uma reedição do “caso Lehman”. Porém, dada a importância do setor na economia, é inevitável a redução do crescimento chinês.
Essa não é a única preocupação. Durante o período de Mao Zedong, o objetivo do governo era a “transformação socialista e a industrialização”, com a eliminação da propriedade privada em áreas urbanas e nas áreas agrícolas mais ricas, promovendo a “cooperação e a propriedade pública”. Era um regime político e economicamente fechado.
Sob a presidência de Hu Jintao, a China se transformou em um exemplo do que Branko Milancovic definiu como capitalismo político. Ao contrário do capitalismo liberal meritocrático, o Estado assume um papel de destaque na produção, mas permite que os empreendedores enriqueçam à custa dos trabalhadores e dos agricultores. Grupos empresariais como Alibaba e Jack Ma ajudaram a acelerar o crescimento do país, mas a contrapartida de seu sucesso econômico foi o aumento do poder político, desafiando o do Partido Comunista da China.
Uma reação foi iniciada sob o comando de Xi Jinping. Cresceu a preocupação com as contradições do sistema, que se resumem nas tensões entre o aumento da riqueza – e do consequente poder político – dos grandes grupos e os baixos benefícios auferidos pelos mais pobres. Por isso, na reorganização do modelo chinês o objetivo é obter a “prosperidade comum a todos”, com o governo intervindo na educação e limitando o poder econômico das grandes empresas, e preocupando-se com o consumo.
Diante dessa transformação estrutural do modelo, é difícil avaliar qual poderá ser o crescimento chinês. Antes da pandemia, o PIB vinha crescendo em torno de 5% a 5,5%. Porém, diante da enorme tarefa de reestruturação política e econômica recém-iniciada, números em torno de 4% ao ano têm sido frequentes nas avaliações.
Sem contar com a contribuição de “bonanças externas”, o crescimento do PIB brasileiro depende de nosso governo e de nosso Congresso. É a eles que cabe a responsabilidade na aprovação das reformas que estimulem o nosso crescimento.
* EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA A.C. PASTORE & ASSOCIADOS. ESCREVE QUINZENALMENTE
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