Ignácio Rangel foi um grande economista brasileiro, porém desconhecido e pouco estudado em nossas aulas de Economia. MARCELO MITERHOF, economista do BNDES, escreveu este artigo na FOLHA, o qual compartilho para conhecimento dos meus, ainda espero, dois fiéis leitores.
Antecipo as
homenagens pelo centenário de Ignácio Rangel, que será em fevereiro de 2014.
Faço isso porque nas últimas semanas distintos temas tratados neste espaço
fazem lembrar dele, em especial sua capacidade de aliar uma criatividade aguda
para elaborar conceitos com um senso de realidade raro entre economistas.
Uso textos
como "O papel da inflação", publicado na Folha de 30/07/1990,
indicação do economista Thiago Mitidieri, com quem discuti sobre Rangel.
Nos anos 30,
Rangel entendia que a industrialização precisaria vir junto com a reforma
agrária. Mais tarde, reconheceu que no Brasil a industrialização, se não fosse
um projeto de lideranças dos proprietários rurais, teria sido natimorta.
No entanto,
isso não ocorreria sem graves problemas. A mecanização do campo sob uma
estrutura fundiária concentrada jogaria muitas pessoas nas cidades, sem que
houvesse ocupação suficiente na indústria e nos serviços para absorvê-las, o
que favoreceu a repressão salarial, travando o adensamento do mercado interno,
o motor da industrialização brasileira.
Avançar na
industrialização -- dos bens leves para os de consumo duráveis e daí para a
indústria pesada -- era o jeito de continuar criando perspectivas. Porém os
avanços ocorriam por saltos na estrutura produtiva em ciclos mais ou menos
decenais, prósperos na primeira metade e recessivos na outra.
Não era
tarefa fácil. Havia capacidade ociosa, por conta das grandes economias técnicas
de escalas, e também estrangulamentos produtivos, fruto de desequilíbrios
próprios de uma mudança estrutural e de restrições de divisas externas.
A inflação
tinha até os anos 60 um comportamento inesperado, se intensificando na
recessão. Os baixos ganhos salariais faziam a demanda agregada no Brasil ser
estruturalmente deprimida, pois dependente do investimento.
Para Rangel,
a inflação tinha outra fonte de aceleração: uma estrutura de mercado
cartelizada, que elevava seus lucros espremendo tanto os consumidores finais
quanto os produtores, em especial nos bens agrícolas. Como a procura de
alimentos é pouco elástica, o aumento de seus preços fazia cair o consumo de
outros bens pelos assalariados, aprofundando a recessão.
Mas a
inflação era útil. Ao penalizar a liquidez, incentivava imobilizações - tanto
pela antecipação da compra de bens duráveis pelos mais ricos quanto em
investimentos incrementais -- quando um ciclo de mudança estrutural dava sinais
de excesso de capacidade.
Essa
imobilização especulativa mitigava a recessão e permitia alinhar as condições
institucionais e o planejamento dos investimentos que fariam parte da nova fase
de expansão industrial.
Rangel não
vituperava contra a inflação, mas tampouco aderiu a ela, sabendo que seu papel
foi circunstancial. A retomada do desenvolvimento viria pela realização de
aperfeiçoamentos institucionais que o novo status de nação industrial exigia.
Para isso, o capital financeiro precisava se integrar ao industrial, o que
permitiria melhor coordenar os investimentos, algo que o país ainda está longe
de ter.
Também estava
claro que a capacidade de expandir a infraestrutura por meio de empresas
públicas tinha se esgotado. Rangel tinha apontado nos anos 60 que esse modelo
era útil, mas esbarraria na limitação de endividamento da União, o que ficou
patente no início dos anos 80. Então, era preciso regenerar os sistemas de
garantias, o que envolvia mudar o direito das concessões e realizar
privatizações.
Hoje, a
infraestrutura no Brasil se expande por meio do "project finance", em
que sociedades de propósitos específicos, com controle privado, financiam os
projetos com base na receita esperada. Nisso, a ideia de Rangel vingou.
Rangel não se
furtava a mudar de posição, mas sem trocar uma crença idealizada no
desenvolvimentismo e na cooperação por outra igualmente idealizada no
liberalismo e na competição. Ele se manteve de esquerda e heterodoxo.
Isso não o
impediu de transigir em questões concretas, defendendo que a industrialização,
para se viabilizar, precisou da elite agrária e que a inflação não era um mal
absoluto. Quando o projeto industrial mostrou sinais de esgotamento, defendeu
as privatizações, antes de elas virarem uma efetiva bandeira liberal.
É possível
discordar de Rangel em vários pontos, mas, houvesse mais economistas como ele,
a economia avançaria bem mais, tanto como teoria quanto na política.