Sei que vivemos um momento de desânimo e que o ódio
substitui certa bonomia que parecia própria dos brasileiros. É preciso cuidado
com cada palavra. Quando eu disse o trivial, que delitos diferentes devem ser
apenados de forma diferente, alguns me tomaram como “mais um” que quer acabar
com a Operação Lava Jato. Nada disso!
A despeito desse clima, há sinais de vida em nossa
economia que mostram que o governo Temer está apontando na direção certa, na área
econômica, ao enfrentar temas que são tabus, como as reformas, casas de
marimbondo que só podem ser propostas por quem não está visando às próximas
eleições. Reconhecer tais avanços não significa desconhecer a enorme quantidade
de problemas a enfrentar. Muito menos imaginar que as “condições de
governabilidade” serão repostas ao se passar um apagador no quadro que a Lava
Jato mostrou. As pessoas só aceitarão a autoridade quando sentirem que a
Justiça está atuando e saberá separar o joio do trigo. Pois que existe trigo,
existe.
Há terreno para melhorar as coisas ao longo do
tempo, permitindo que visões hoje discrepantes convirjam. Uma boa oportunidade
para a construção de uma nova agenda é a chamada “reforma política”. Os mais
prudentes dirão: não é o melhor momento para mexer em questão tão delicada.
Respondo, como dizia a meus colaboradores do Plano Real quando alegavam que a
fragilidade do governo da época e o tormento dos parlamentares com a CPI dos
“anões do Orçamento” seriam impedimentos para a estabilização monetária: como
as forças tradicionais estão desorganizadas, o momento é agora.
Devemos rever as regras eleitorais em pleno auge da
Lava Jato. Convém, contudo, qualificar os passos requeridos para aperfeiçoar o
sistema político-eleitoral, olhando para o horizonte e tendo as convicções como
norte. Política, porém, não é fé: os propósitos não se efetivam ao serem
proclamados; precisam convencer, motivar e construir rotas de aproximação entre
as diferenças.
Estou convencido de que o parlamentarismo e o voto
distrital misto são o melhor caminho para fortalecer as instituições
democráticas. Como instalá-los numa conjuntura política em que os partidos se
dissolveram e se multiplicaram como siglas que visam mais a obter acesso aos
recursos públicos (Fundo Partidário, programa eleitoral, posições vantajosas no
Poder Executivo, etc.) do que pregar e construir a “boa sociedade”? Implantar o
voto distrital misto e o parlamentarismo neste momento é pouco viável. É
preciso reconstituir a confiança nos partidos e para isso eles não deveriam
agir como simples máquinas de amealhar votos. Talvez seja conveniente admitir
no ínterim candidaturas independentes e discutir a obrigatoriedade do voto.
Enquanto isso, há o que fazer. Alguns propõem o
voto em “lista fechada”, pelo qual o eleitor escolhe um partido, e não um
candidato, nas eleições para a Câmara dos Deputados. Adotada essa modalidade,
cada partido terá o número de cadeiras proporcional ao número de votos obtido
por sua legenda. Se um partido tiver direito a dez cadeiras, por exemplo, elas
serão ocupadas pelos dez primeiros candidatos da lista partidária.
Inconveniente: o eleitor elegeria “em bloco” quem as oligarquias partidárias
mais desejassem. A não interferência do eleitor na escolha de nomes pode ser
amenizada dando a ele a faculdade de reordenar a lista; esse, entretanto, é
procedimento difícil de ser executado e computado.
O propósito da proposta é saudável: fortalecer os
partidos, sem os quais não há “democracia representativa”. Além disso, ela
torna viável o financiamento público das campanhas eleitorais, porque
facilitaria a fiscalização no uso dos recursos, uma vez que as campanhas seriam
feitas por alguns partidos, e não por milhares de candidatos.
O enunciado das dificuldades desenha o longo
caminho a percorrer. Melhor sermos realistas e começarmos com mudanças menos
ambiciosas. Em livro recente de Jairo Nicolau – Representantes de Quem? – há
sugestões úteis (algumas em curso no Congresso Nacional) na fase de transição
em que nos encontramos. Como há limites de prazo para definir novos
procedimentos eleitorais (eles devem ser aprovados até setembro para terem
vigência em 2018), creio que o indispensável é aprovar logo a “cláusula de
barreira”. Neste caso seriam necessários x por cento de votos, distribuídos por
um número mínimo de Estados, para que os partidos pudessem ter representação
institucional no Legislativo (menos para o Senado, no qual o voto é no
candidato), acesso ao Fundo Partidário e ao tempo de televisão. Também é
indispensável aprovar a proibição de coligações nas eleições proporcionais,
para evitar que ao votar num deputado de um partido se eleja alguém de outro.
Resta a questão do financiamento. Os partidos
precisam de um fundo público, dada a proibição de contribuição das empresas
feita pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Entretanto, por que dá-lo a não
partidos, como são as siglas sem voto? Deve-se adotar o mesmo critério da
cláusula de barreira: o acesso aos fundos públicos deve restringir-se a quem
obtenha o quórum nacional mínimo de eleitores. E, sobretudo, podem-se baratear
as campanhas, começando pela proibição de “marquetagem” nos programas de TV.
As convicções devem ser mantidas. Essas medidas
deveriam vir no bojo de duas outras mais: uma, a aprovação da emenda do senador
José Serra que estabelece o voto distrital para as próximas eleições de
vereador. Outra, generalizando o voto distrital misto com eleição em 2022 de
metade dos deputados por escolha direta dos eleitores e metade a partir de uma
“lista fechada”. É o que, aliás, propõe o relator da reforma eleitoral na
Câmara dos Deputados.
O momento é já!
*Sociólogo, foi presidente da República
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