domingo, 2 de abril de 2017

Fernando Henrique Cardoso: Apelo ao bom senso.


Sei que vivemos um momento de desânimo e que o ódio substitui certa bonomia que parecia própria dos brasileiros. É preciso cuidado com cada palavra. Quando eu disse o trivial, que delitos diferentes devem ser apenados de forma diferente, alguns me tomaram como “mais um” que quer acabar com a Operação Lava Jato. Nada disso!

A despeito desse clima, há sinais de vida em nossa economia que mostram que o governo Temer está apontando na direção certa, na área econômica, ao enfrentar temas que são tabus, como as reformas, casas de marimbondo que só podem ser propostas por quem não está visando às próximas eleições. Reconhecer tais avanços não significa desconhecer a enorme quantidade de problemas a enfrentar. Muito menos imaginar que as “condições de governabilidade” serão repostas ao se passar um apagador no quadro que a Lava Jato mostrou. As pessoas só aceitarão a autoridade quando sentirem que a Justiça está atuando e saberá separar o joio do trigo. Pois que existe trigo, existe.

Há terreno para melhorar as coisas ao longo do tempo, permitindo que visões hoje discrepantes convirjam. Uma boa oportunidade para a construção de uma nova agenda é a chamada “reforma política”. Os mais prudentes dirão: não é o melhor momento para mexer em questão tão delicada. Respondo, como dizia a meus colaboradores do Plano Real quando alegavam que a fragilidade do governo da época e o tormento dos parlamentares com a CPI dos “anões do Orçamento” seriam impedimentos para a estabilização monetária: como as forças tradicionais estão desorganizadas, o momento é agora.

Devemos rever as regras eleitorais em pleno auge da Lava Jato. Convém, contudo, qualificar os passos requeridos para aperfeiçoar o sistema político-eleitoral, olhando para o horizonte e tendo as convicções como norte. Política, porém, não é fé: os propósitos não se efetivam ao serem proclamados; precisam convencer, motivar e construir rotas de aproximação entre as diferenças.

Estou convencido de que o parlamentarismo e o voto distrital misto são o melhor caminho para fortalecer as instituições democráticas. Como instalá-los numa conjuntura política em que os partidos se dissolveram e se multiplicaram como siglas que visam mais a obter acesso aos recursos públicos (Fundo Partidário, programa eleitoral, posições vantajosas no Poder Executivo, etc.) do que pregar e construir a “boa sociedade”? Implantar o voto distrital misto e o parlamentarismo neste momento é pouco viável. É preciso reconstituir a confiança nos partidos e para isso eles não deveriam agir como simples máquinas de amealhar votos. Talvez seja conveniente admitir no ínterim candidaturas independentes e discutir a obrigatoriedade do voto.

Enquanto isso, há o que fazer. Alguns propõem o voto em “lista fechada”, pelo qual o eleitor escolhe um partido, e não um candidato, nas eleições para a Câmara dos Deputados. Adotada essa modalidade, cada partido terá o número de cadeiras proporcional ao número de votos obtido por sua legenda. Se um partido tiver direito a dez cadeiras, por exemplo, elas serão ocupadas pelos dez primeiros candidatos da lista partidária. Inconveniente: o eleitor elegeria “em bloco” quem as oligarquias partidárias mais desejassem. A não interferência do eleitor na escolha de nomes pode ser amenizada dando a ele a faculdade de reordenar a lista; esse, entretanto, é procedimento difícil de ser executado e computado.
O propósito da proposta é saudável: fortalecer os partidos, sem os quais não há “democracia representativa”. Além disso, ela torna viável o financiamento público das campanhas eleitorais, porque facilitaria a fiscalização no uso dos recursos, uma vez que as campanhas seriam feitas por alguns partidos, e não por milhares de candidatos.

O enunciado das dificuldades desenha o longo caminho a percorrer. Melhor sermos realistas e começarmos com mudanças menos ambiciosas. Em livro recente de Jairo Nicolau – Representantes de Quem? – há sugestões úteis (algumas em curso no Congresso Nacional) na fase de transição em que nos encontramos. Como há limites de prazo para definir novos procedimentos eleitorais (eles devem ser aprovados até setembro para terem vigência em 2018), creio que o indispensável é aprovar logo a “cláusula de barreira”. Neste caso seriam necessários x por cento de votos, distribuídos por um número mínimo de Estados, para que os partidos pudessem ter representação institucional no Legislativo (menos para o Senado, no qual o voto é no candidato), acesso ao Fundo Partidário e ao tempo de televisão. Também é indispensável aprovar a proibição de coligações nas eleições proporcionais, para evitar que ao votar num deputado de um partido se eleja alguém de outro.

Resta a questão do financiamento. Os partidos precisam de um fundo público, dada a proibição de contribuição das empresas feita pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Entretanto, por que dá-lo a não partidos, como são as siglas sem voto? Deve-se adotar o mesmo critério da cláusula de barreira: o acesso aos fundos públicos deve restringir-se a quem obtenha o quórum nacional mínimo de eleitores. E, sobretudo, podem-se baratear as campanhas, começando pela proibição de “marquetagem” nos programas de TV.

As convicções devem ser mantidas. Essas medidas deveriam vir no bojo de duas outras mais: uma, a aprovação da emenda do senador José Serra que estabelece o voto distrital para as próximas eleições de vereador. Outra, generalizando o voto distrital misto com eleição em 2022 de metade dos deputados por escolha direta dos eleitores e metade a partir de uma “lista fechada”. É o que, aliás, propõe o relator da reforma eleitoral na Câmara dos Deputados.

O momento é já!

*Sociólogo, foi presidente da República

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