O pano de fundo da
situação política atual é a tremenda crise econômico-financeira em que os
governos do PT jogaram o País. Em resumo retórico e exagerado: o Tesouro
quebrou. Há um endividamento acelerado pelo alto custo da dívida pública
federal (mais de 14% de juros por ano, sobre uma dívida de mais ou menos R$ 3
trilhões) e pela expansão dos gastos correntes em todos os níveis. Esse fato
levou os Estados a pleitear a renegociação de suas dívidas com a União em
termos perigosos para o conjunto das finanças públicas do País. Além disso, só
a Petrobrás deve mais de R$ 500 bilhões e precisará ser capitalizada. Fora as
dívidas não reconhecidas, os “esqueletos”, da Caixa Econômica, do setor
elétrico, etc. Frutos da péssima gestão e de irresponsabilidade fiscal.
É
com esse pano de fundo que o Congresso está votando o impeachment da
presidente. É constitucional derrubar uma presidente porque é má administradora
e perdeu a popularidade? Não. Mas não é disso que se trata. Trata-se de que
houve, sim ,“crime” de responsabilidade, seguido de um brutal enfraquecimento
político do governo. No que consiste o crime de responsabilidade? Em a
presidente ter utilizado os bancos públicos para mascarar a verdadeira situação
fiscal da República e ter autorizado gastos sem aprovação pelo Congresso. Pôs
em risco a credibilidade do governo perante o “mercado”e, pior, perante o povo,
que está pagando as bravatas financeiras com o desemprego, a inflação e a falta
de crédito.
O
ministro do Supremo que presidiu o julgamento no Senado do ex-presidente
Collor, o jurista Sydney Sanches, deu uma explicação cristalina sobre em que
consistiu o “crime” de responsabilidade naquele caso. A alegação fundamental
era de que o presidente recebera um automóvel de presente. O Senado considerou
que houve “quebra de decoro”. O ministro Sanches concordou com a interpretação
e disse mais: desrespeitar a Lei de Responsabilidade Fiscal e fazer gastos sem
autorização do Congresso são formas de quebra de decoro. Entretanto, Collor foi
absolvido pelo Supremo, na acusação de crime comum (corrupção), com o voto do
próprio Sanches. Por quê? Porque não ficou provado que da quebra de decoro
tivesse decorrido qualquer benefício para quem o presenteara com o carro.
Logo,
o “crime” de responsabilidade não é um crime capitulado no Código Penal, mas na
Constituição, com duplo aspecto: jurídico-administrativo e político. Do
impeachment nada mais decorre senão a substituição de quem está no poder e a
perda dos direitos políticos por oito anos. Não se trata de condenar alguém criminalmente,
mas de afastar um dirigente político que desrespeitou a Constituição e perdeu
sustentação política.
Alguns
alegam que o impeachment atual é irregular porque as “pedaladas” fiscais se
deram sobretudo no primeiro mandato de Dilma e também teriam sido praticadas
por outros presidentes. No caso destes, houve apenas breves atrasos no repasse
de pequena monta de recursos do Tesouro aos bancos. No caso do atual governo,
os atrasos se acumularam ao longo de mais de um ano, alcançando quase R$ 60
bilhões. Quanto à questão dos atos em causa se referirem ao mandato anterior,
tanto a Constituição como a lei de 1950 que regula o impeachment não poderiam
fazer a distinção entre o primeiro e o segundo mandato porque inexistia a
possibilidade de reeleição.
De
um possível e mesmo provável afastamento da presidente decorre, pela
Constituição, sua substituição pelo vice-presidente. Trata-se de uma
determinação constitucional, não de uma escolha. Quanto à nulidade da eleição
de 2014, sob o fundamento de que houve abuso do poder econômico ou mesmo
corrupção, é matéria afeta ao Tribunal Superior Eleitoral. Dificilmente isso
ocorrerá este ano; se for no próximo, o Congresso escolherá o novo presidente,
com menor participação do eleitorado do que a simples assunção do vice, que
teve o mesmo número de votos que a presidente. Fazer uma emenda constitucional
para reduzir o mandato atual é procedimento que implica reduzir mandatos, tema
altamente discutível do ponto de vista constitucional, por mais que possa ser
melhor chamar eleições diretas e colocar no poder quem não esteve direta ou
indiretamente envolvido com os “malfeitos” do governo atual. Demandará, de toda
maneira, meses de discussão.
Havendo
impeachment, espera-se que o vice-presidente assuma a responsabilidade histórica
que lhe cabe: juntar o País ao redor de um programa de “emergência nacional”
que dê possibilidades reais para a economia voltar a crescer. O novo Ministério
precisa ter crédito perante a opinião pública, e não somente no Congresso. Cabe
ao presidente escolher sua equipe, assim como cabe aos partidos, especialmente
ao PSDB, que não participou da antiga base governamental, apresentar a agenda
indispensável para o momento e, se for o caso, referendar a escolha de
ministros que pertençam a seus quadros. É natural que cada partido avalie as
consequências de suas decisões sobre a sucessão de 2018. Mas o essencial é que
os partidos que vierem a apoiar o governo se preocupem com a viabilidade e a
urgência das soluções que o País exige para sair da crise.
Para
ingressar num governo que não é seu o PSDB deve fazê-lo com base em
compromissos claros, a serem assumidos pelo novo presidente: não interferir na
Lava Jato, dar passos inequívocos na reforma político-administrativa, recriar
as condições do crescimento da renda e do emprego e não apenas manter, mas
melhorar, as políticas sociais. Se os compromissos forem descumpridos, o PSDB
deve deixar o governo da mesma maneira como eventualmente ingressar, explicando
as razões de sua decisão. O governo pós-impeachment não é do PSDB e não deverá
ser monopólio de nenhum partido, mas uma emergência nacional. Caso contrário
haverá riscos de naufrágio. É hora de cada partido e cada líder assumir suas
responsabilidades perante a Nação.
Fernando Henrique Cardoso - 01/05/2016.
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