Demétrio
Magnoli, no GLOBO de 04.07.2013, comenta sobre a paixão brasileira. Cada coisa no seu lugar. Gostar de futebol e torcer pelo Brasil é muito diferente de utilizar o dinheiro público na construção de elefantes brancos, ao invés de investir na educação, saúde e segurança. Afinal, você já pensou em quem ganha muito dinheiro com a Copa no Brasil?
Todos
podem protestar em todos os lugares - exceto nas imediações das sagradas
arenas da Copa das Confederações. Essa foi a mensagem enviada pelas
autoridades na "semana quente" das manifestações populares. Sem
intervenção policial, manifestantes cercaram palácios e interromperam vias
expressas. Em São Paulo, o eixo sensível da Avenida Paulista, onde se
concentram os hospitais, foi liberado para os protestos. Contudo, nas
cidades-sede do evento, batalhões de choque delimitaram um "perímetro de
segurança nacional" e atacaram manifestantes pacíficos que tentavam
ultrapassá-lo. A regra do protesto ilimitado excluiu os "territórios
internacionais" sob controle efetivo da Fifa. Nunca, numa democracia, um
governo nacional se curvou tão completamente a uma potência externa
desarmada.
A
bolha policial de isolamento dos estádios estendeu-se por dois a três
quilômetros. Não se tratava de assegurar o acesso de torcedores às arenas,
mas de impedir que as marcas dos protestos ficassem impressas sobre as marcas
da Fifa e das empresas patrocinadoras. "A condição prévia para a Copa é
a cessão temporária da soberania nacional à Fifa, que assume funções de
governo interventor por meio do seu Comitê Local." Nesse espaço, dois
anos atrás, Adriano Lucchesi e eu definimos a Copa do Mundo de 2014 como uma
"festa macabra" justificada pela "lógica perversa do
neopatriotismo".
Não
fomos os únicos, nem os primeiros. O jornalista Juca Kfouri deplorou o
triunfo dos bons companheiros Lula da Silva e Ricardo Teixeira na hora da
escolha do Brasil como sede do megaevento de negócios travestido de
competição esportiva. O ex-jogador Romário honrou seu mandato parlamentar
denunciando sistematicamente a farra de desvio de dinheiro público, que ainda
faz seu curso. "A Fifa é o verdadeiro presidente do Brasil hoje",
explicou com a precisão e simplicidade de que carecem tantos doutos
cientistas políticos. Mas a rapinagem dos piratas ficou longe da mira dos
partidos de oposição, que preferiram ocupar assentos periféricos na nave da
Copa, compartilhando dos brindes erguidos em convescotes de autoridades,
empresários e cartolas. Alguém aí está surpreso com a aversão dos
manifestantes ao conjunto de nossa elite política?
3
x 0. No domingo, encerrou-se o ensaio geral para o que será a Copa mais cara
da história. A festa macabra custará, no mínimo, R$ 28 bilhões, quase quatro
vezes mais que a realizada na África do Sul em 2010 (R$ 7,3 bilhões) e perto
de três vezes mais que as Copas na Alemanha em 2006 (R$ 10,7 bilhões) e no
Japão/Coreia em 2002 (R$ 10,1 bilhões). "Com o dinheiro gasto para
construir o Mané Garrincha poderiam ter sido construídas 150 mil casas
populares", calculou Romário. Ele tem razão: a arena de Brasília, a mais
cara de todos os tempos, custou R$ 1,7 bilhão.
Obedecendo
a uma compulsão automatizada, o ministro Gilberto Carvalho apontou um dedo
acusador para a imprensa, que "teve um papel no moralismo, no sentido
despolitizado" das manifestações populares. No mundo ideal desse senhor
"politizado", uma imprensa chapa-branca monopolista, financiada
pelas empresas estatais, desempenharia a função de explicar aos saqueados que
o saque é parte da ordem natural das coisas. "Sem a imprensa, não somos
nada", concluiu Jérôme Valcke, o zagueiro de várzea da Fifa, que também
gostaria de ter um "controle social da mídia".
Um
séquito de analistas especializados na arte da empulhação dedica-se, agora, a
criticar os cartazes dos manifestantes que contrapõem a Copa à
"saúde" e à "educação". No seu pronunciamento desesperado
do fim da "semana quente", Dilma Rousseff recorreu aos sofismas
desses analistas para exercitar o ilusionismo. Os recursos queimados na
fogueira das arenas "padrão Fifa", disse a presidente, são
"fruto de financiamento", não dinheiro do Orçamento. Mas ela não
disse que a fonte dos financiamentos concedidos pelo BNDES são títulos de
dívida pública emitidos pelo Tesouro, nem que a a diferença entre os juros
reais pagos pelo Tesouro e os juros subsidiados cobrados pelo BNDES é coberta
pelos impostos de todos os brasileiros, da geração atual e da próxima.
A
"verdade técnica" da presidente não passa de um véu destinado a
esconder o significado financeiro da festa macabra promovida pela Fifa e pelo
governo brasileiro. No seu conjunto, a operação Copa 2014 é uma vasta
transferência de renda da população para a Fifa, as empresas patrocinadoras
do megaevento e as empreiteiras contratadas nas obras civis. Uma CPI da Copa
revelaria as minúcias da rapinagem, destruindo no caminho governantes em
todos os níveis que se engajaram na edificação de elefantes brancos com
recursos públicos. É com a finalidade de evitá-la a qualquer custo que uma
corrente de parlamentares resolveu aderir à ideia de uma CPI da CBF. Sob a
pressão das ruas, cogita-se a hipótese de entregar os escalpos de José Maria
Marin e Ricardo Teixeira numa bandeja de prata para salvar a reputação das
autoridades políticas cujas assinaturas estão impressas nas leis e contratos
da Copa.
"O
Brasil nos pediu para sediar a Copa do Mundo. Nós não impusemos a Copa do
Mundo ao Brasil." Joseph Blatter, o poderoso chefão da "família
Fifa", não mente quando repete seu mantra preferido. O
"Brasil", na frase, significa "Lula da Silva". A Copa
mais cara da história é a síntese perfeita do legado político do presidente
honorífico. À entrada do Mineirão, no jogo entre México e Japão, funcionários
a serviço da Fifa arrancaram das mãos de dois torcedores cartazes onde
estavam escritas as palavras proibidas "escola" e
"saúde". Os batalhões de choque em postura de batalha no perímetro
de "segurança nacional" da Copa e os agentes da censura política em
ação nos portões das arenas protegem mais que a imagem da Fifa e das marcas
associadas. Eles protegem, sobretudo, a imagem de Lula, o regente da festa
macabra.
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domingo, 7 de julho de 2013
A Copa de Lula.
quinta-feira, 13 de outubro de 2011
Quanto vale a Europa?
Demétrio Magnoli, sociólogo e
doutor em Geografia Humana pela USP, hoje, especialmente para o ESTADÃO.
"Sem o euro não existe
Europa", constatou Angela Merkel, no mesmo discurso em que assegurou que
não haverá uma "união da dívida". As afirmações, contraditórias entre
si, refletem imperativos diferentes. A primeira é uma homenagem prestada à
História - ou seja, ao projeto supranacional da União Europeia. A segunda
expressa a vontade dos eleitores alemães - ou seja, a existência do
Estado-nação. Agora, diante da iminente falência grega e do espectro de um
colapso bancário em série, a chanceler alemã deve escolher entre uma e outra,
pois não pode ter as duas.
História, no caso da Europa,
significa uma catástrofe única, que devastou o sistema moderno de Estados
erguido na Paz da Westfalia, em 1648, e reconstruído no Congresso de Viena, em
1815. A União Europeia, um fruto da catástrofe, é filha de Stalin e de Hitler.
Stalin: o projeto europeu
emanou das circunstâncias da guerra fria, na forma de uma aliança entre a
França e a Alemanha, antigas rivais separadas pelos ressentimentos acumulados
em três guerras sucessivas. O ato inicial da Europa foi o Plano Schuman, de
criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (Ceca), em maio de 1950,
meses depois da fundação da Alemanha Ocidental e da Organização do Tratado do
Atlântico Norte (Otan). À sombra ameaçadora da URSS, a unidade da Europa
Ocidental era o complemento necessário para a aliança transatlântica com os
EUA.
Hitler: o projeto europeu
emanou das ruínas fumegantes da 2.ª Guerra Mundial, o testemunho do colapso de
um sistema baseado na soberania absoluta dos Estados. A ideia genial do francês
Jean Monnet, de compartilhamento de soberanias, representou a solução para uma
civilização destruída pelo nacionalismo sem freios. O ingresso da Alemanha
Ocidental na Otan implicava o rearmamento alemão, apenas cinco anos depois da
libertação de Paris. A Ceca foi o intercâmbio que o propiciou: no altar da
aliança com a França, a Alemanha sacrificou sua supremacia nacional na
indústria siderúrgica, a fonte do aço e das armas.
Numa prova de que a
paternidade de Hitler é mais forte que a de Stalin, o encerramento da guerra
fria não provocou a dissolução do projeto europeu, mas o seu avanço para um
novo patamar. A reunificação alemã, em 1990, reativou as assombrações de um
passado perene. Então, o espírito de Monnet inspirou François Mitterrand e
Helmut Kohl a formularem uma segunda grande barganha, coagulada no Tratado de
Maastricht, de 1992: "Toda a Alemanha para Kohl, metade do marco alemão
para Mitterrand", na síntese proporcionada por uma ironia realista. A
introdução do euro representou um novo sacrifício alemão, desta vez da
supremacia nacional monetária, no altar da unidade europeia. O compromisso
reafirmado de uma "Alemanha europeia" deveria afastar para sempre os
temores estrangeiros e as tentações nacionais sobre a "Europa alemã".
"Estados Unidos da
Europa" - a ousada fórmula de Monnet para um mundo pós-nacional ganhou uma
materialidade mais prosaica na Comunidade Europeia, inaugurada em 1957. O gesto
fundador deu-se em Roma, cercado por um simbolismo elétrico. Roma é a metáfora
do Império, isto é, o oposto perfeito da nação. O Estado-nação é o poder de uma
entidade política singular e homogênea, que exerce sua soberania num sistema
internacional de Estados soberanos. O Império é o poder universal de um
soberano, que se exerce sobre uma miríade heterogênea de povos. O mito da
restauração de Roma, a memória abstrata de um tempo de unidade, pairava sobre
os estadistas que fundaram a Comunidade Europeia.
A força foi a ferramenta das
diversas tentativas medievais e modernas de reinvenção de Roma. Tratava-se, mais
de meio século atrás, de restaurá-la pelo instrumento do consenso. Mas, mesmo
depois de Maastricht, a realidade nunca se confundiu com o mito. A Europa que
se veste com as roupagens do Império é uma comunidade de Estados nacionais.
Além da esfera de soberanias compartilhadas, subsistem as nações, com seus
sistemas políticos próprios, suas leis singulares e seus governos particulares.
Quando a tempestade ameaça varrer o euro e toda a herança de Monnet, os
holofotes iluminam os encontros entre os chefes de governo da Alemanha e da
França, não a Comissão Europeia ou os burocratas que ninguém elegeu instalados
na ilha europeia de Bruxelas.
Há duas décadas, Kohl invocou
a promessa sagrada da unidade alemã para convencer os eleitores de que os
alemães orientais eram concidadãos e, por isso, valia a pena subsidiar a troca
de marcos orientais na equivalência artificial de um para um. Angela Merkel
carece do argumento de Kohl, quando se trata de gregos, portugueses, irlandeses
espanhóis ou italianos. Uma coluna da revista britânica The Economist registra
que a palavra alemã Schulden, que significa "dívida", deriva de
Schuld, cujo significado é "culpa". A tradição luterana se mescla à
vívida memória da hiperinflação da República de Weimar para formar um denso
caldo de resistência às propostas de resgate europeu dos países endividados. A
ideia de união fiscal, contrapartida aparentemente indispensável à união
monetária, assumiria a forma imediata de uma "união da dívida", pela
emissão de títulos europeus ou por um aumento dramático nos recursos do Fundo
Europeu de Estabilidade Financeira. Mas é precisamente isso que Angela Merkel
qualificou como inaceitável.
Quanto vale a Europa?
Sondagens de opinião entre os alemães revelam uma rejeição majoritária a novos
pacotes de salvamento dos países que rondam o precipício. Simetricamente, entre
os gregos, uma sólida maioria recusa a transferência da soberania popular sobre
a economia nacional para Berlim e Bruxelas, condição quase explícita do plano
de resgate em curso. Angela Merkel tem dias, talvez semanas, para começar a
falar sobre Stalin e Hitler. O valor da Europa depende do eco que, tanto tempo
depois, ainda puder gerar a menção desses nomes sinistros.
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