Antonio Delfim Netto, hoje no VALOR, busca
responder se o Brasil é manipulador de câmbio.
Este é um bom momento para lembrar como a
introdução de um pouco mais de cuidado e realismo corrige as conclusões que se
extraem automaticamente de modelos abstratos. Todos lembram a crítica feroz que
sofreu o governo brasileiro quando sugeriu: 1) que existia uma espécie de
"guerra cambial"; e 2) que o problema da subvalorização prolongada de
algumas moedas (particularmente o yuan) deveria, sim, ser discutido na
Organização Mundial de Comércio (OMC), uma vez que o FMI não tinha nenhum poder
para fazer valer o seu papel de "vigilante" dos desequilíbrios
fundamentais dos balanços em conta corrente. A surpreendente resposta do
sistema financeiro internacional foi atacar o Brasil, por "exagerar na
manipulação da sua moeda"!
A lição vem de um interessante e meticuloso
trabalho do economista J.E.Gagnon, "Combating Widespread Currency
Manipulation" (Peterson Institute for International Economics, Policy
Brief 12-19, July 2012). O autor começa reconhecendo que, "ainda que as
manipulações cambiais para aumentar o balanço comercial de um país sejam uma
violação dos artigos do acordo que instituiu o Fundo Monetário Internacional
(FMI), não existe, na prática como puni-lo". E continua: "O melhor
fórum para produzir sanções contra as manipulações cambiais é a Organização
Mundial do Comércio (OMC), em consulta com o FMI. Os países prejudicados por
tais manipulações devem ser autorizados a impor tarifas alfandegárias às
importações dos países manipuladores".
Uma curiosa sugestão de Gagnon é a
alternativa de "taxar ou restringir a compra pelos países manipuladores de
ativos financeiros dos EUA e da zona do euro", o que dificultaria e
aumentaria os custos e os riscos da acumulação de reservas.
O importante no trabalho é a pergunta
preliminar do autor: o que é, afinal, uma manipulação cambial? Ele formula uma
definição cuidadosa: "Ocorre uma
manipulação cambial quando um governo compra ou vende a moeda estrangeira para
colocar a taxa cambial longe do seu equilíbrio, ou impedir que ela se mova para
atingir aquele equilíbrio". E como ele define a "taxa de equilíbrio"?
"É
aquela que é sustentável no longo prazo, ou seja, em que o balanço em conta
corrente não está gerando aumento explosivo dos ativos estrangeiros líquidos
relativamente à riqueza interna e externa. A sustentabilidade geralmente
implica um pequeno valor para o balanço em conta corrente. Entretanto, as
economias em rápido crescimento podem manter déficits em conta corrente, na
medida em que seus passivos não cresçam mais do que o seu PIB e que tal passivo
seja relativamente pequeno com relação aos passivos totais do mundo".
Que características têm que ter uma economia
para ser considerada uma "manipuladora de
câmbio"? O autor estabelece três condições que devem ser
simultaneamente satisfeitas para que isso ocorra:
1) o país deve ter reservas externas que
superem seis meses do valor de suas importações de bens e serviços;
2) o país deve ter tido, na média de
2001-2011, um balanço em conta corrente, como percentagem do PIB, maior do que
zero. O autor exclui a possibilidade que o país possa estar tentando apenas
reduzir o seu déficit em conta corrente;
3) o país deve ter visto crescer a relação
reserva/PIB nos últimos dez anos.
Os países de "baixa renda" são
excluídos da análise pelo princípio que eles devem ter maior liberdade do que
os outros para implementar políticas de desenvolvimento, que podem ter
externalidades negativas. Examinando os restantes países-membros do FMI e da
OMC, J.E.Gagnon identifica 20 que satisfazem, simultaneamente, às condições
para serem classificados como "manipuladores de câmbio". Ele os
divide em quatro grupos:
1) velhas economias desenvolvidas, como Japão
e Suíça;
2) novos países industrializados, como
Israel, Cingapura e Taiwan;
3) os países asiáticos em desenvolvimento,
como China, Malásia e Tailândia;
4) países exportadores de petróleo, como
Argélia, Rússia e Arábia Saudita.
Para tristeza de alguns de nossos
economistas, o Brasil não é classificado como
"manipulador" por lhe faltar a condição "2" acima.
Não acontece o mesmo com a Argentina, com a qual temos, não sem alguma razão,
exercido uma paciência chinesa.
O Brasil talvez tenha exagerado, mas não
mentiu: 1) uma certa "guerra cambial" existe; 2) é preciso mesmo
envolver a combinação FMI-OMC (câmbio e tarifa) para enfrentá-la e restabelecer
o equilíbrio do comércio internacional; e 3) cometeu apenas pecado venial.
Salvou-se do pecado capital da "manipulação" por uma análise mais
profunda e cuidadosamente isenta do viés antigoverno que continua a dominar
alguns de nossos analistas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário