No carnaval passeei com casais amigos por Florença e vizinhanças. Há mais de meio século, eu, minha mulher Ruth, Bento e Lucia Prado e Arthur Giannotti passeáramos pela mesma região com a fascinação da primeira vez e a energia da juventude. Lá, de onde escrevo este artigo, passamos o 31 de dezembro de 1961.
Desta vez, com o mesmo deslumbramento, revi o que pude das cidades toscanas. Em 1961 vivíamos o clima da Guerra Fria — russos e americanos se enfrentavam por procuração, como na “crise dos mísseis” em Cuba — e as marcas da guerra quente estavam presentes na Europa bombardeada. Agora, nem mesmo a eventual tensão belicosa que os dias de Trump deixam entrever assusta o Ocidente.
A memória se esfuma: passa-se por um ou outro cemitério americano em solo italiano e só os mais velhos, imagino, ainda se lembram do que foi a luta dos Aliados contra o Eixo totalitário. Em poucos brasileiros ressoam os nomes de Monte Cassino e Monte Castello, marcos do heroísmo dos soldados brasileiros.
É bom, entretanto, não esquecer. Desfrutando o gênio de Masaccio ou o colorido e a perspectiva dos afrescos de Ghirlandaio, a poucos passos um do outro na Santa Maria Novella, é bom darmo-nos conta de que o que o passado construiu pode romper-se e não só na arte.
Vale a pena recordar que a História é mãe e madrasta ao mesmo tempo.
Os sinais do futuro podem não ser do nosso agrado, mas com eles teremos de nos haver.
O pós-guerra, a despeito das diferenças entre comunistas e capitalistas, resultou na criação das Nações Unidas e na corresponsabilização dos vencedores da guerra pela ordem global e pela paz mundial.
O arcabouço político que precedeu a globalização econômica está se modificando, e a continuidade do que pareceria imutável no espírito ocidental depois de tanta violência e morte, o internacionalismo, não pode mais ser tomado como algo definitivo.
Será que os eleitores do Brexit ou os rebelados do Rust Belt, que atribuem suas perdas à globalização e aos imigrantes, acaso se deram conta de que estão destruindo o que as gerações passadas fizeram com tanto esforço? Provavelmente não e pouco importa.
O que é certo é que o “equilíbrio de poder” que americanos, chineses, russos e europeus construíram depois da guerra de 1939-45 está abalado. E não pela “desglobalização” ou pelas crises da economia — que sempre pesam — mas pela visão do mundo e do poder que os governantes da geração atual parecem acalentar.
Os Estados Unidos com Trump se retraem dos compromissos internacionais: o “America first” de Trump visa mais o fortalecimento da economia doméstica do que o predomínio mundial.
Os chineses se expandem na economia e se fortalecem regionalmente, mas sem empenho em construir o mundo à sua semelhança, como tinham os americanos.
A Rússia se contenta em intervir de onde era excluída, de “sua” área imperial e das zonas onde historicamente os otomanos deram as cartas.
E por aí vão refazendo caminhos os antigos donos do mundo, deixando a Europa escabreada.
Diante disso, o que cabe aos que ainda não têm voz decisiva no capítulo global, como nós brasileiros, é dar-nos conta de nossos interesses e ver estrategicamente, sem alinhamentos automáticos nem mesmo ideológicos (pois disso não se trata como na luta contra o Totalitarismo ou o Comunismo), para que lado vai o mundo e como melhor nos situamos nele.
Este “pragmatismo responsável” não deve se eximir de tomar partido, entretanto, na defesa dos direitos humanos e da democracia quando for o caso.
Não deve tão pouco deixar de avaliar friamente os interesses econômicos de nosso povo. Se até Larry Summers, ex-ministro da Fazenda dos Estados Unidos e pilar do pensamento liberal de mercado, para compensar as angústias da globalização, apresentou um texto ao Berggruen Institute falando de “nacionalismo responsável”, por que não deveríamos repensar nossas chances, interesses e responsabilidades quando uma nova ordem mundial começa a esboçar-se?
O Itamaraty, sob a batuta de José Serra, reviu posições e revigorou alguns de nossos antigos propósitos. Dentre estes, o fortalecimento da cláusula democrática no Mercosul e a consequente cobrança de novos rumos na Venezuela.
Precisamos intensificar os liames com os vizinhos da América do Sul no lado do Pacífico e, principalmente, dar maior força a nossa ligação com a Argentina. Da mesma forma, necessitamos de sólida reaproximação com o México, flechado por Trump; devemos ampliar nossas convergências, não só econômicas mas políticas, com aquele país.
O muro proposto separa não apenas o México: separa os latino-americanos e os americanos adversos à insensatez de Trump.
Começamos a vislumbrar que as mudanças no tabuleiro internacional não vão na direção de um novo Hegemon, mas abrem espaço para alianças regionais que podem transcender o hemisfério. Neste, por escolha dos Estados Unidos, estão distantes os tempos da Alca.
Quem sabe um acordo com o Mercosul se torne viável, com os alemães à frente e os ingleses correndo à parte, mas também interessados em, ao se distanciarem de Bruxelas, não perderem espaços no mundo.
China e Índia, que crescem 7% ao ano, precisarão cada vez mais de comida e minérios de que dispomos.
O rearranjo atual da ordem global não tem força para estancar o que as mudanças culturais e tecnológicas tornaram irreversível: as consequências do aumento da produtividade e a integração produtiva. As mudanças em curso decorrem mais das questões de poder do que das econômicas. Isso não nos leva a descuidar de nossa base produtiva, mas induz-nos a não descuidar dos meios disponíveis de poder, que incluem capacidade de defesa e visão estratégica.
É o que esperamos do governo ao nomear um novo ministro para as Relações Exteriores: que não se esqueça de que entraremos em um jogo “de gente grande”.
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