Durante décadas, o ex-secretário de Estado dos EUA Henry Kissinger, 88, foi um observador da China. Ele falou à "Der Spiegel" sobre seus encontros com Mao Tse-Tung, o futuro do Partido Comunista chinês e a rivalidade crescente entre Beijing e Washington.
Spiegel: Sr. Secretário, você acaba de celebrar seu 88º aniversário, o que significa que é quase tão velho quanto um dos partidos políticos mais influentes da história mundial - o Partido Comunista da China (CPC), que fez 90 anos na semana passada. Ainda é correto chamar o CPC de comunista? A China, tema de seu livro mais recente, ainda é comunista?
Kissinger: Não é um país comunista da forma como foi historicamente definido - com o estado gerindo a economia, determinando a distribuição de renda, e detendo o monopólio de todos os aspectos da vida intelectual. As reformas de Jiang Zemin no início da década de 2000 tentaram ampliar a base do Partido Comunista pela doutrina dos Três Representantes. Mas a China continua sendo um partido comunista no sentido de que o Partido Comunista detêm um monopólio do poder político.
Spiegel: Você se lembra de quando percebeu pela primeira vez o CPC como um movimento histórico, talvez até como uma ameaça histórica?
Kissinger: Nos anos 60, eu teria considerado a China com seu CPC um país mais dinâmico ideologicamente do que a União Soviética. Mas a União Soviética era estrategicamente mais ameaçadora.
Spiegel: E mesmo assim você e o presidente Richard Nixon não evitaram retomar as relações diplomáticas com a liderança comunista chinesa, a partir de 1973.
Kissinger: A Inglaterra e a França haviam estabelecido relações diplomáticas anos antes. Nossas conversas com Pequim serviram a um propósito estratégico: pensávamos que se China e a União Soviética compensassem uma à outra seria do interesse estratégico ocidental. Além disso, acreditávamos que era muito importante demonstrar para o povo norte-americano, na época dividido pela Guerra do Vietnã, uma nova noção de paz internacional.
Spiegel: Quando você se encontrou com os chineses na época, percebeu o imenso prejuízo humano que esses líderes haviam infligido a seu próprio povo - a Revolução Cultura, o Grande Salto Adiante? Isso não o incomodou?
Kissinger: Esses eventos foram uma catástrofe.
Spiegel: E foram bem documentados na época de suas negociações na China. O Grande Salto sozinho custou até 45 milhões de vidas, de acordo com estimativas dos historiadores.
Kissinger: O sofrimento e a fome eram conhecidos, mas não em sua total dimensão. Em todo caso, nos lidamos com a China enquanto um estado; não endossamos sua direção moral. Todos nossos aliados europeus e o Japão aplaudiram esse caminho.
Spiegel: É uma escolha que você fez porque suas considerações de política externa superavam as morais?
Kissinger: Não. Porque nós achávamos que promover a paz também era uma virtude moral, e porque a segurança também era um objetivo importante. Nós pensaríamos que a conclusão alternativa teria sido não ter nenhum contato com a China.
Spiegel: Você acredita que o CPC ainda existirá daqui a mais 90 anos?
Kissinger: O partido terá que ampliar sua base. Há muitas forças novas na China, e os líderes do atual partido estão proclamando que são necessárias mudanças. A questão essencial, é claro, é se os chineses permitirão em tempo a existência de partidos alternativos.
Spiegel: O CPC tem uma esquerda ideológica em seu cerne, ou ele é apenas um veículo conveniente de poder para as elites chinesas.
Kissinger: O partido se desenvolverá na direção do partido PRI (Partido Institucional Revolucionário) que governou o México por cerca de sete décadas fazendo ajustes pragmáticos. Pode haver um componente ideológico no cerne que, entretanto, não fará o papel amplo que fazia no período de Mao.
Spiegel: A abertura de relações, que você iniciou, tem com frequência sido divulgada como um triunfo político estrangeiro. Mas pode-se argumentar que ela começou um processo que agora tornou os Estados Unidos mais fracos e a China mais forte. O atual déficit comercial dos EUA com a China é gigante, e Pequim tem quase US$ 900 bilhões em títulos do tesouro dos EUA.
Kissinger: Você pode dizer isso só se não viveu naquela época como um participante consciente no debate. Quando a relação começou, a ideia de que a China se tornaria um competidor econômico para os Estados Unidos parecia inimaginável. Mas qual era a alternativa? Se um país de um bilhão de pessoas se organiza, ele pode se transformar num enorme concorrente. O desequilíbrio fiscal não é causado pela abertura mas por políticas norte-americanas equivocadas.
Spiegel: A secretária de Estado norte-americana Hillary Clinton já expressou sua frustração com a China ao dizer: "como você pode ser duro com o seu banqueiro?"
Kissinger: Quando você deve dinheiro para o banco, isso se torna um arranjo mutuamente suicida. Se os chineses tentarem usar sua posição como banqueiros, eles podem fazê-lo sob o risco de perder as exportações que os tornaram o principal banqueiro em primeiro lugar.
Spigel: Então você ficaria menos preocupado com o débito dos EUA com a China do que Clinton?
Kissinger: É difícil jugar os graus de preocupação. Eu não acredito que a relação de banqueiro como tal é impossível de gerenciar. Entretanto, ela não é viável para que os Estados Unidos tenham déficits imensos indefinidamente sem colocar em risco seu crédito geral independentemente do que os chineses façam com a dívida que eles têm.
Spiegel: Clinton também foi crítica com a reação da China em relação à Primavera Árabe. Ela disse que os chineses estão "com medo" dela e tentando fazer a história voltar atrás. O quanto Pequim está preocupada com os acontecimentos recentes no Oriente Médio?
Kissinger: Não é sábio, nem tática nem psicologicamente, dizer a um país com 4 mil anos de história sem interrupções que compreendemos sua história melhor do que eles próprios. Mas sem dúvida, a possível aplicação dos princípios da Primavera Árabe à China é um motivo de preocupação para a liderança chinesa.
Spiegel: O que aconteceria se os protestos sociais emergissem na China e houvesse uma repetição do massacre na Praça Tiananmen? Como o mundo reagiria?
Kissinger: A posição formal norte-americana foi a de se opor à violência por parte de governos contra seus povos. Esse princípio não deveria ser abandonado. As implicações disso em casos individuais, entretanto, precisam ser vistas no contexto geral da política externa.
Spiegel: Isso deixa muito espaço de manobra.
Kissinger: Temos de defender essas questões de direitos humanos que consideramos de fundamental importância, mas também precisamos entender que há um preço em política externa a ser pago por essa atitude.
Spiegel: Você parece preferir lidar com temas de direitos humanos atrás de portas fechadas, e não em público.
Kissinger: Eu sempre disse que em relação à China, o engajamento é preferível.
Spiegel: Mas quando a China está irritada com outro país ou, por exemplo, com o Comitê do Prêmio Nobel por laurear o dissidente chinês Liu Xiaobo, ela diz isso, em alto e bom som. Esta é uma questão de dois pesos e duas medidas - por que o Ocidente não deveria criticar Pequim em público?
Kissinger: Eu não critico as pessoas que assumem uma postura pública em questões de direitos humanos. Expresso meu respeito por elas. Mas algumas pessoas são mais influentes sem uma confrontação pública.
"Pequim quer melhorar as relações com os EUA"
Spiegel: Quando o presidente Barack Obama assumiu o poder, ele tentou dialogar com a China. Mas mais tarde o debate sino-americano ficou concentrado em controvérsias - discussões na Conferência do Clima em Copenhague, debates fervorosos sobre a taxa de câmbio chinesa ou a fria recepção que Obama teve durante sua visita à China.
Kissinger: Obama gostaria de melhorar as relações com a China. A China também quer melhorar suas relações com os Estados Unidos. O que não está acontecendo é encontrar uma gramática para o diálogo, e parte disso é um problema cultura. Os norte-americanos veem a política externa como uma série de questões pragmáticas, em parte porque todos os problemas que foram reconhecidos como problemas nos EUA tiveram solução. Então, lidamos com os chineses numa série de temas específicos.
Spiegel: E isso é diferente para os chineses?
Kissinger: Os chineses olham para a política externa como uma série de eventos inter-relacionados. Veja o debate sobre a taxa de câmbio chinesa: nós discutimos mais estreitamente se a moeda chinesa deve se valorizar. Os chineses veem isso em termos da relação econômica geral com os EUA.
Spiegel: E eles só ajustariam sua moeda se os norte-americanos estivessem dispostos a retribuir?
Kissinger: Exatamente. Deve haver algum ajuste norte-americano em alguma área significativa para os chineses.
Spiegel: Então os chineses estão pensando de forma mais estratégica em termos de política estrangeira?
Kissinger: Não, apenas mais amplamente.
Spiegel: Os chineses sentem atualmente que estamos finalmente retornando às glórias do passado?
Kissinger: Os chineses costumam ser descritos como uma "potência em ascensão". Mas eles não pensam em si mesmos como uma potência em ascensão, porque durante 18 dos últimos 20 séculos, seu PIB foi o maior do mundo. Eles percebem o último século e meio como uma aberração e humilhação.
Spiegel: Você está descrevendo a mentalidade da liderança chinesa com grandes detalhes, mas tendo visitado a China mais de 70 vezes, você conheceu chineses comuns?
Kissinger: Eu não sei o que você quer dizer com "chineses comuns". Na maioria das visitas, eu faço o mesmo que eu faço na Alemanha, que é encontrar um grupo de intelectuais e pessoas que eu posso alcançar.
Spiegel: Você encontrou o ditador Mao Tse-Tung várias vezes nos anos 70. O que ele acharia da China moderna?
Kissinger: Mao estava interessado nessa noção de purificação ideológica da China mais do que numa recuperação econômica do país. Em nossas conversas, ele não mostrava praticamente nenhum interesse na cooperação econômica com o Ocidente. Então ele poderia considerar a China atual muito materialista. Ele provavelmente não gostaria dos modernos "yuppies" de Pequim ou Xangai.
Spiegel: "Pureza" - é este o ideal a que você associa Mao?
Kissinger: A definição de pureza de Mao era baseada em premissas diferentes do que as do Ocidente. Ele infligiu um sofrimento monstruoso ao povo chinês. Mas estou apenas apontando que a atitude chinesa é mais complexa. Eles apreciam o fato de que ele uniu o povo chinês.
Spiegel: Os chineses estão começando a pensar que talvez Mao tivesse algum outro objetivo?
Kissinger: A geração do ex-líder chinês Deng Xiaoping (que governou nos anos 80 e 90) considera a Revolução Cultural um desastre sem precedentes. Acredito que foi um imenso desastre, também. Mas há pessoas hoje na China que olham para as políticas lançadas por Mao como algo que poderia ter algum significado, mesmo quando foram longe demais.
Spiegel: As empresas norte-americanas que investiram na China reclamam sobre violações massivas aos direitos autorais. Autoridades norte-americanas lamentam o chamado "novo colonialismo chinês" na África. Como é possível abordar esses temas, dadas as sensibilidades chinesas que descreveu?
Kissinger: Em questões que afetam o interesse nacional imediatamente, você defende. Isso é normal quando se fala sobre o impacto de uma nação além de suas fronteiras. Minha visão é de que na relação com a China, nossos interesses estão mais bem servidos ao criar uma noção de coevolução do que pelo confronto constante.
Spiegel: Quando a China se envolve em outros países, ela parece estar preocupada apenas com interesses empresariais ou recursos naturais. Diferentemente dos EUA, Pequim não desenvolveu ainda tendências ideológicas missionárias.
Kissinger: Os norte-americanos acreditam que podem alterar as pessoas por conversão, e que todos no mundo são norte-americanos em potencial. Os chineses também acreditam que seus valores são universais, mas não acreditam que podem converter os outros a se tornarem chineses, este são apenas os que nasceram no país.
Spiegel: O seu livro será publicado na China?
Kissinger: Não sei ainda. Não aceitarei cortes, então será interessante ver se isso acontece ou não.
Spiegel: Sr. Secretário, muito obrigado por esta conversa.
Entrevista conduzida por Gregor Peter Schmitz e Bernhard Zand.