Ilan Goldfajn, no O Estado de S. Paulo de hoje, comenta sobre a crise americana e a situação brasileira. Uma excelente leitura.
Obama e os republicanos chegaram a um acordo à beira do abismo. O calote estava próximo. No mínimo, será necessário interromper serviços fundamentais da economia americana para pagar o serviço da dívida. A visão predominante é que era tudo desnecessário, fruto de uma política partidária insana. Mas exageros e desfechos dramáticos à parte, não compartilho essa opinião. O debate fiscal nos EUA é legitimo e essencial. Não deve surpreender a falta de consenso sobre profundos cortes de gastos ou a volta dos impostos: tarefa difícil após a mais grave crise financeira internacional e com desemprego ainda recorde. Mas a dívida alta tem de ser recolocada numa trajetória sustentável. Estamos acostumados a assistir a debates fiscais desesperados e emocionantes nos Parlamentos apenas quando forçados por credores já recusando rolar a dívida do governo. O caso da Grécia é o exemplo mais recente desse fenômeno. Nos EUA não há problema com o financiamento da dívida. No fundo, os problemas nos EUA e na Europa são da mesma natureza fiscal, mas em estágios de degradação distintos.
Nos últimos tempos temos assistido a turbulências nas economias maduras. Parece, mas não é coincidência, que as crises estão ocorrendo em paralelo. Tanto nos EUA como na Europa, os problemas fiscais ficaram mais evidentes depois da crise. O crescimento potencial está sendo reavaliado e a viabilidade de manter a trajetória dos gastos, questionada. A crise mostrou que havia uma percepção mais otimista do futuro do que possível. O estouro da "bolha", visto a posteriori, é um sintoma dessa percepção equivocada. A solução é adaptar-se à realidade. Para evitar promover cortes profundos no meio da recessão é necessário pensar o ajuste no médio e no longo prazos. Alguns países, como Grécia, Portugal e Irlanda (e mesmo Espanha e Itália) não têm mais esse luxo: o seu ajuste de médio e de longo prazos virou de curtíssimo prazo. E mesmo assim, em alguns casos, como o da Grécia, será necessária a reestruturação da dívida. Outros países ainda têm o luxo de ajustes ao longo do tempo, como Alemanha, EUA, França e Japão, mas precisam começar a atuar já nos seus planos.
Nos EUA, o Congresso habitualmente autoriza o aumento do teto da dívida, que cresce sempre nominalmente, mesmo que como proporção do PIB não fosse o caso. Na situação atual, a discussão do teto veio a reboque do problema fiscal. O acordo na 24.ª hora prevê aumento do teto da dívida em US$ 2,1 trilhões (sendo US$ 900 bilhões neste ano e US$ 400 bilhões imediatamente) em troca de cortes de US$ 2,5 trilhões nos próximos dez anos. Mas de que forma ocorrerão esses cortes?
Há um debate legítimo na sociedade sobre como resolver a difícil questão fiscal e o excesso de endividamento. Os democratas querem evitar cortes de programas sociais (preferem aumento de impostos para empresas e para os mais ricos) e os republicanos querem corte de gastos mais profundos, evitando aumento de impostos. No acordo, a composição de cortes de US$ 1 trilhão já está delimitada e envolve gastos militares, entre outros. Os gastos militares voltaram a crescer após os atentados de 11 de setembro de 2001, com a volta do suporte da população às intervenções militares.
O impasse fiscal só parece ter chegado ao fim adiando-se o debate dos cortes de U$ 2,5 trilhões restantes para uma segunda etapa. As elevações adicionais da dívida (US$ 1,2 trilhão) ficam condicionadas a essa negociação. Serão meses e anos difíceis de negociação para decidir onde serão os cortes, inclusive sobre a previdência social e assistência médica aos mais velhos, e sobre uma possível reforma tributária (aumento de impostos).
É claro que questões puramente políticas estavam obscurecendo o debate. Os republicanos tinham interesse em adiar esse debate fiscal (ou antecipar os cortes de gastos) para o ano que vem, no meio das eleições, para prejudicar a imagem de Barack Obama. Era tudo o que ele queria evitar. Enquanto isso, a população mais moderada e independente irritava-se com ambos os partidos, o que, em última instância, os empurrava para a mesa de negociação.
Não obstante o acordo, as agências de classificação de risco ainda podem rebaixar a nota dos EUA por considerarem os cortes de gastos insuficientes. O Escritório de Orçamento do Congresso (CBO, na sigla em inglês) estima que a dívida líquida vá atingir quase 85% do PIB nos próximos anos.
Há duas lições para o Brasil.
Primeiro, é importante perceber a mudança de curso na economia global. As economias maduras deixarão de ter seu dinamismo de outrora no futuro próximo. É um período em que excesso de velocidade (nos gastos públicos, por exemplo) pode levar a derrapagens sérias.
Segundo, temos aqui nosso próprio debate fiscal, que requer atenção, antes de sermos empurrados para o ajuste forçado. A dinâmica da dívida, que em suas épocas era a questão central, hoje dá lugar ao debate sobre os ajustes fiscais necessários para permitir juros menores, câmbio menos apreciado e espaço maior para investimentos público e privado, tão necessários ao desenvolvimento futuro. Temos avançado pouco num projeto fiscal de médio e de longo prazos nessa direção.
Europa de um lado, EUA do outro. É triste constatar que ainda estamos vivendo os tremores financeiros após o "terremoto" da crise financeira de 2008. O legado da crise são décadas de ajuste e redução das dívidas públicas (e privadas). Melhor pensar em formas de ajuste que antecedam o ajuste forçado. Isso vale para o Brasil, que fez um ajuste fiscal no passado quando necessário, mas que precisa projetar um plano de médio e de longo prazos para permitir queda da inflação, dos juros e do câmbio e um crescimento potencial maior. Nos EUA, o timing da crise fiscal foi autoimposto, o que, apesar de tudo, foi melhor que ajustar sob pressão dos credores.
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