Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp e escreve mensalmente às terças-feiras no VALOR ECONÔMICO. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists.
Iniciada no segundo semestre de 2007 e
acelerada no infausto episódio da quebra do Lehman Brothers, em setembro de
2008, a crise não dá sinais de arrefecer. Alguns analistas, como Krugman,
Roubini, Michel Aglietta, Martin Wolf e Cláudio Borio avançaram na compreensão
do fenômeno ao buscar sua gênese nas transformações ocorridas nas relações
indissociáveis entre a esfera monetário-financeira e a chamada "economia
real".
No ciclo de expansão recente,
combinaram-se métodos inovadores de "alavancagem" financeira,
valorização imobiliária, a migração da produção manufatureira, a ampliação das
desigualdades, insignificante evolução dos rendimentos da população assalariada
e dependente e a degradação dos sistemas progressivos de tributação. A lenta
evolução dos rendimentos acumpliciou-se à vertiginosa expansão do crédito para
impulsionar o consumo das famílias. Amparado na "extração de valor"
ensejada pela escalada dos preços dos imóveis, o gasto dos consumidores
alcançou elevadas participações na formação da demanda final em quase todos os
países das regiões desenvolvidas. Enquanto isso, as empresas dos países
consumistas cuidavam de intensificar a estratégia de separar em territórios
distintos a formação de nova capacidade e a captura dos resultados.
No período de euforia, as grandes
empresas deslocaram sua manufatura para as regiões em que prevaleciam baixos
salários, câmbio desvalorizado e alta produtividade. Americanos e europeus
correram para a Ásia e os alemães, mesmo frugais, saltaram para os vizinhos do
Leste. Dessas praças, exportaram manufaturas baratas para os países e as
regiões de origem. Embalados pela expansão dos gastos das famílias, realizaram
lucros e acumularam caixa (em geral nos paraísos fiscais) além de cavar
alentados déficits em conta corrente na pátria-mãe.
A queda do investimento na formação da
demanda agregada dos países centrais foi mais do que compensada pela aceleração
desse componente do gasto nos emergentes asiáticos. O balanço global registra a
criação generalizada de capacidade produtiva excedente, particularmente nos
setores de alta e média tecnologia afetados pela concorrência internacional.
Imagino que alguns olhares ainda
reconheçam nessas transformações os movimentos da economia capitalista ou da
economia monetária da produção, como Keynes a qualificava. Nela imperam o
avanço da divisão do trabalho entre grandes, médias e pequenas empresas
privadas, a ampliação das relações de assalariamento em suas várias formas, a
dominância da moeda bancária produzida e reproduzida pela generalização das
operações de débito-crédito e o impulso à expansão ilimitada dos mercados.
Essa economia pode ser concebida como
grande painel de balanços inter-relacionados. Observados em suas interrelações,
os balanços dos bancos, empresas e famílias, governos e setor externo
registram, em cada momento, os resultados das decisões de financiamento e de
gasto tomadas privadamente por cada um dos participantes do jogo do mercado. As
decisões privadas de gasto apoiadas no crédito - o pagamento de salários e as
compras entre as empresas - criam o fluxo de renda agregada da economia e, ao
mesmo tempo, modificam a situação patrimonial dos protagonistas.
Na fase ascendente do ciclo, o fluxo de
lucros e a poupança das famílias e do governo cuidam de garantir o serviço e
estabilidade do valor das dívidas e dos custos financeiros. As poupanças
decorrentes do novo fluxo de renda constituem o funding do sistema bancário e
do mercado de capitais. Estes últimos, em sua função de intermediários,
promovem a validação do crédito e da liquidez (criação de moeda)
"adiantados" originariamente para viabilizar os gastos de
investimento e de consumo.
Quando os motores reverteram, acionados
pela queda nos preços dos imóveis e pela desvalorização dos ativos financeiros
associados ao consumo, escancarou-se um estoque de endividamento
"excessivo" das famílias, calculado em relação aos fluxos esperados
de rendimentos e à derrocada do valor das residências. Afogadas nas sobras de
capacidade à escala global, as empresas cortaram ainda mais os gastos de
capital. Aliviadas da carga de ativos podres graças à ação dos bancos centrais,
as instituições financeiras acumularam reservas excedentes, mas hesitam em
emprestar até mesmo às suas congêneres. Entre a queda das receitas, a ampliação
automática das despesas e o socorro aos bancos moribundos, os déficits fiscais
aumentaram, engordando as carteiras dos bancos com a dívida dos governos. Já os
desequilíbrios em conta corrente dos balanços de pagamentos não andam nem
desandam.
Nos últimos três anos, as famílias com
equity negativo e as empresas sobrecarregadas de capacidade correm para os
confortos da liquidez e do reequilíbrio patrimonial. Os países e as regiões se
engalfinham: uns para reverter os déficits externos, outros para manter seus
superávits. Os governos ensaiam políticas de austeridade fiscal.
Tais decisões são "racionais"
do ponto de vista microeconômico e virtuosas sob a ótica da gestão das finanças
domésticas, mas perversas para o conjunto da economia. Se todos pretendem
cortar gastos, realizar superávits e se tornar líquidos ao mesmo tempo, o
resultado só pode ser a queda da renda, do emprego e o crescimento do
"peso" das dívidas cujo "valor" está fixado em termos
nominais. É o paradoxo da desalavancagem, também conhecido como o inferno das
boas intenções, cujas chamas crepitam no conhecido, mas sempre descuidado
território das falácias de composição. Se bem interpretadas, as falácias
poderiam nos aconselhar a discernir os fundamentos macroeconômicos da
microeconomia.