“América Latina e
as novas veias abertas” é o título do artigo de César Felício, publicado no
VALOR ECONÔMICO de hoje e que merece a nossa reflexão.
"Nenhum assassinato foi
registrado ontem". Quando uma frase dessa é usada em uma manchete de
jornal, a exemplo do que fez o mexicano "El Diário" na edição de 3 de
agosto deste ano, pode se ter um termômetro da dimensão do problema de
segurança em Ciudad Juarez, na fronteira do México com o Texas (Estados
Unidos). A notícia de jornal comentava que o marcante 2 de agosto era o oitavo
dia não consecutivo deste ano em que não aconteceram homicídios e que até o
fechamento da edição já se contabilizava 28 horas sem um assassinato, o maior
intervalo desde as 41 horas sem mortes violentas de 29 de outubro de 2009.
O exemplo mexicano é o que está em
voga, mas a prática de cortar a cabeça de desafetos está longe de ser um
produto típico daquele país. As estatísticas mostram que, para o Brasil ficar
igual ao México, vai precisar reduzir da faixa de 25 para 21 o índice de
homicídios dolosos por 100 mil habitantes. Neste começo de século, o mal da
América Latina não é a corrupção, a fraqueza das instituições, a desigualdade
social, deficiências na educação e crescimento urbano desordenado, mas a
síntese disto tudo, traduzida em um caldo de cultura que fomenta o
narcotráfico.
O retrato da impotência foi traçado no
mês passado, em um Congresso de especialistas do México, Colômbia, Brasil,
Argentina, Uruguai, Espanha e Estados Unidos em Vicente López, cidade da parte
mais abastada da periferia de Buenos Aires. Do encontro ficou a certeza de que
a frase de Marx no início do 18 Brumário é indesmentível: Um raio não cai de um
céu azul. A violência na América Latina explodiu porque as condições para tal
estavam dadas.
Há uma guerra contra os cartéis no
México e esta é uma explicação apenas parcial para que em Ciudad Juarez a taxa
de homicídios tenha aumentado de 17 para 170 mortes por 100 mil habitantes
desde a posse do presidente Felipe Calderón, em 2006. Colabora para o desastre
a população ter passado de 260 mil habitantes para 1,3 milhão de moradores nos
últimos cinquenta anos, ao passo que o emprego industrial está virtualmente
estagnado desde 1988. Mas a variável política é uma das razões da ofensiva.
O fim dos regimes autocráticos e o
enfraquecimento da insurgência armada gerou uma espécie de anomia, como efeito
paralelo da democratização. Neste novo modelo, em que há competição pelo poder
de cima a baixo, o controle institucional na base desta pirâmide é pouco ou
nenhum e as campanhas eleitorais por vezes tomam a forma de um leilão de compra
e venda de votos. Os grupos criminosos percebem a debilidade do Estado e
estabelecem suas pontes, quando não tentam assumir a própria gestão.
E o principal vértice da ofensiva se
dá nos próprios aparelhos de controle. Não é uma casualidade o fato deste
setembro ter sido marcado pela condenação por um tribunal norte-americano do
ex-czar das drogas na Bolívia, o general René Sanabria, e pela prisão de um
tenente coronel da Polícia Militar do Rio de Janeiro acusado de mandar matar a
juíza Patricia Acioli, que investigava homens de seu batalhão por envolvimento
com milícias.
"A experiência da América Latina
demonstra que só no momento em que o crime organizado entra no espaço político
ocorre uma reação, e é em geral ineficaz, porque de enfoque apenas repressivo.
Foi assim na Colômbia, quando líderes de cartéis chegaram ao Congresso, é o que
acontece no México e já começa a ocorrer do mesmo modo no Brasil", disse o
sociólogo Hugo Acero, que foi secretário de Segurança em Bogotá nos anos 90.
O modelo latino-americano de
delinquência organizada vai assumindo os contornos de máfia, no sentido de não
se focar em uma única atividade criminosa e de ter no controle territorial um
de seus fundamentos. Talvez por isso floresça mesmo com as mudanças que
aconteceram no narcotráfico, captadas no último relatório mundial sobre drogas
produzido pela ONU e disponível na internet.
Lá se explica que o faturamento do
mercado global de cocaína caiu de US$ 170 bilhões para US$ 85 bilhões entre
1995 e 2009. A razão fundamental para a queda foi a diminuição do consumo nos
Estados Unidos, que aspira 37% do pó do planeta. Aumentou a repressão às vendas
em solo americano e no principal fornecedor, a Colômbia, onde a área de cultivo
caiu de 163 mil hectares em 2000 para 62 mil hectares no ano passado.
A queda nos Estados Unidos fez com que
o negócio de drogas, muito menor, passasse a disputar com mais afinco mercados
até então menos atrativos, como o Cone Sul da América Latina e a Europa. As
novas rotas de tráfico estimularam o crescimento do cultivo no Peru e na
Bolívia, ainda que esta expansão não tenha sido suficiente para compensar a
diminuição da produção colombiana. Para se adaptar à nova realidade, surgiram
estratégias de competição em um mercado como o brasileiro, de menor poder
aquisitivo que o americano, com a diminuição do teor da pureza ou subprodutos
como o crack e oxi.
Se nestes últimos 15 anos os índices de
homicídio dobraram em países como o México, triplicaram em nações como Honduras
e chegaram ao zênite nas metrópoles brasileiras, é porque o narcotráfico não é
a única moeda de troca que move a engrenagem de assassínios. O sistema se
enraíza no roubo de cargas, no tráfico de pessoas, no contrabando e se nutre
pela corrupção. Não é à toa, que, dos 26 países das Américas e Caribe avaliados
pela Transparência Internacional em seu relatório do ano passado, os cinco
países com menor índice de percepção de corrupção são também os que tem menor
taxa de homicídios: Estados Unidos, Canadá, Uruguai, Chile e Barbados
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