Antonio Delfim Netto, professor
emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento,
escreveu hoje no VALOR sobre “Metas inflacionárias”.
Para tornar a política econômica mais eficaz e
útil, é preciso ter presente que somos constrangidos pelos limites impostos por
uma Constituição legitimamente construída em 1988 e que pretende: 1) ser
republicana, onde todos, inclusive o poder incumbente, devem obedecê-la; 2) ser
democrática, onde o poder é escolhido livremente (e dispensado!) pelo sufrágio
universal; e 3) ter como seu objetivo último uma relativa e crescente
"justiça social", que deve manifestar-se no aumento contínuo da
igualdade de oportunidade para os cidadãos. Em outras palavras, é necessário
entender a economia como imersa na sociedade e sujeita às suas prioridades.
A igualdade de oportunidade é objetivo fácil de
ser enunciado, mas esconde enormes problemas conceituais e práticos. De
qualquer forma, deve começar com a chance de todo cidadão ganhar a vida com o
seu esforço. De todos os desperdícios de recursos naturais de uma sociedade,
nenhum é mais injusto, mais prejudicial à integração social e à autoestima do
cidadão, do que negar-lhe a oportunidade de viver honestamente e sustentar a família
com o resultado de seu trabalho.
É por isso que a construção de uma sociedade
mais "justa" começa pela maximização do nível de emprego disponível.
Obviamente, não se trata do emprego de todos ao mesmo tempo. Nossa organização
econômica tem íncita um dinamismo próprio, estimulado pela mudança das
preferências dos consumidores e pelo desenvolvimento tecnológico, que exige
permanente adaptação da estrutura produtiva: algumas atividades entram em
declínio e cedem recursos (mão de obra inclusive) para outras, que atendem
melhor à "nova e mutante" estrutura da demanda. O processo não é
instantâneo, nem isento de custos e riscos.
Nunca há equilíbrio: simplesmente a passagem de
uma situação, às vezes "pensada" como equilíbrio, para outra, que
também não será de "equilíbrio", ainda que possamos
"pensá-la" como tal. Esse "tempo de acomodação" gera um
desemprego friccional que a sociedade "justa" tem que socorrer, com
as políticas sociais do Estado.
É dessa concepção do mundo que nasceu a
divergência entre duas "escolas" de pensamento econômico, diante da
evidente existência e persistência do desemprego: 1) de um lado, os que
acreditam que, no longo prazo, o desinibido funcionamento dos mercados
produzirá, por si mesmo, sem a intervenção externa do Estado, um ajustamento, a
despeito de não se saber bem o que é "longo prazo" e de reconhecer
que o processo pode ter armadilhas e defasagens temporais com relação ao
emprego; e 2) do outro, os que não acreditam que o sistema de mercado seja
capaz de produzir, por si, a redução do desemprego, em geral gerado por
deficiência da demanda agregada, para levar à plena utilização da capacidade
produtiva.
A economia, se for alguma coisa, é uma ciência
social. Tenta entender um universo mutante, onde todas as
"constantes" são "variáveis" e, não importa qual a potência
da metodologia usada para torturar o passado para que ele revele o futuro, este
continua opaco. Como não é possível construir experimentos críticos capazes de
discriminar entre as duas visões, é claro que ambas envolvem larga dose de
ideologia. É fato conhecido que nas ciências sociais as preferências não
reveladas de pesquisadores, que se supõem "neutros", influenciam os
seus resultados.
A despeito dessa divergência (no tempo, cada
lado já trocou da posição de ortodoxo para heterodoxo, de acordo com o
"espírito do mundo"), o conhecimento de como funciona a
organização econômica da sociedade e de como se comportam seus agentes - e de
como reagem à ação do governo e dos efeitos não intencionais que ela acaba
produzindo- tem crescido de maneira importante e revelado equívocos e exageros
de ambas as partes.
A evolução da economia, desde a crise de 2007, e
as tentativas de superar a crise financeira que atingiu o setor produtivo,
consolidaram a ideia que o sistema de economia de mercado, deixado a si mesmo
e, pior, contaminado por inovações financeiras que têm papel duvidoso para o
desenvolvimento econômico, não tem nenhuma condição de se autocorrigir.
Por outro lado, as políticas econômicas sugeridas
pelos que não acreditam na autocorreção do mercado mostraram sérias limitações.
A conclusão é que, apesar das evidências mostrarem que na atual conjuntura
esperar um autoajuste do mercado é absurdo, isso não autoriza liberdades com a
política econômica.
As políticas fiscal, monetária e cambial do
governo parecem estar na direção correta. São condicionadas a um cenário
mundial em clara deterioração e tentam antecipar o que pode ocorrer com a taxa
de crescimento econômico e logo em seguida, também, sobre o nível de emprego. Não
há abandono da política de metas inflacionárias, quando se altera o peso dado
ao desvio entre a inflação corrente e sua meta, relativamente ao desvio entre o
PIB e o PIB potencial (seja lá o que isso for) para fixar a taxa de juros.
Ninguém subscreveria hoje esta barbaridade
autoritária que, até 2007, era o limite intransponível da
"ciência" monetária: "A sociedade pode, às vezes, melhorar
seu bem-estar nomeando um banqueiro central que não compartilha (sic) seus
objetivos sociais e que, em seu lugar, aumente o "peso" da
estabilização monetária relativamente à estabilidade do emprego"
(Rogoff, K.S., 1985).
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