Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo,
ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, professor titular
do Instituto de Economia da Unicamp, escreveu hoje no VALOR ECONÔMICO o texto
“Soros e as vacilações da eurolândia”.
Em artigo publicado no "Financial
Times" de sexta-feira, 29 de setembro, George Soros recomenda que autoridades
da eurolândia se entendam a respeito da criação do Tesouro Comum. Enquanto esse
acordo não for celebrado, diz o financista, três providências devem ser
tomadas: 1) os bancos seriam colocados sob a direção do Banco Central Europeu
(BCE) em troca de garantias temporárias e permanente capitalização; 2) o BCE
obrigaria os bancos a manter as linhas de crédito e os empréstimos existentes;
3) o BCE permitiria o refinanciamento temporário a baixo custo de países como
Espanha e Itália. Soros conclui: "Essas medidas acalmariam os mercados e
dariam tempo para a Europa desenvolver um estratégia de crescimento, sem a qual
o problema da dívida não pode ser resolvido".
George Soros pensa o impensável, diz o que está
interditado no debate sobre as causas e as curas da doença europeia. Ousa
revelar o que deveria ser óbvio para qualquer cidadão medianamente informado: a
crise da dívida soberana europeia é, sobretudo, uma crise grave do sistema
bancário europeu, com reverberação nos bancos americanos.
No auge da crise de 2008, os bancos centrais da
cúspide capitalista cumpriram seu dever e impediram que o crash financeiro
degenerasse numa Grande Depressão. Tão logo o pânico deflagrado pela quebra do
Lehman Brothers cedeu, saíram das sombras os estoques de dívida soberana acumulados
na Europa durante o período de subavaliação dos riscos. Vitimas e protagonistas
da farra financeira, os governos da eurolândia fecharam os olhos para a orgia
de endividamento privado (depois público) promovida pelos (saltim)bancos da
desregulamentação financeira. Estimulada e celebrada por muitos, a
desregulamentação abriu caminho para a "invasão" do risco sistêmico
nas engrenagens da finança capitalista.
Vou citar o insuspeito e temerário Alan
Greenspan: "O risco sistêmico é quase exclusivamente um fenômeno das
instituições financeiras. A inadimplência de grandes instituições pode
desmantelar o sistema financeiro e com ele o resto da economia, devido às
múltiplas e intrincadas relações entre a finança e a atividade econômica... Os
riscos gerados por empresas não financeiras - independentemente de seu tamanho
- ficam restritos aos seus credores, fornecedores e clientes. Raramente têm
impacto mais amplo."
O sistema de crédito moderno tem a função de
ampliar e antecipar no tempo a capacidade de investimento e de consumo das
empresas, das famílias e dos governos. Ele opera como uma central privada de
administração monetária e de alocação da riqueza líquida coletiva. Nessa
função, os bancos (e, hoje, os demais intermediários financeiros que se
abastecem nos mercados monetários) são provedores da rede informacional do
mercado: definem as normas de acesso à liquidez, ao crédito e administram o
sistema de pagamentos.
Gestores privados da forma geral da riqueza, os
bancos, em princípio, deveriam regular o estado da liquidez e do crédito de
acordo com a evolução dos balanços inter-relacionados de empresas, famílias,
dos governos e das próprias instituições financeiras. Mas, a crise recente
demonstrou que essa pretensão é irrealizável em um ambiente em que prevalecem a
concorrência e a busca desaçaimada por resultados entre as instituições
financeiras privadas. No período que antecedeu à crise - na esteira da
integração global dos mercados financeiros - a "centralização
privada" da moeda e do crédito nas instituições "grandes demais para
falir" alastrou o processo competitivo de geração e distribuição de ativos
com precificação enigmática em moedas distintas.
Quando a roda da fortuna girou em falso, com
colapso de preços e ampla flutuação das moedas, foi inevitável o recurso à
"centralização estatal", única forma de contornar a destruição do
crédito e da moeda, ou seja, da rede informacional da economia monetária da
produção. A ruptura nas articulações do sistema de provimento de liquidez, de
gestão da riqueza e de pagamentos acarretou a quase paralisia do metabolismo
econômico.
Os bancos centrais, portanto, estão condenados a
cumprir a missão de reverter a deterioração generalizada dos balanços. Esses
desequilíbrios financeiros e patrimoniais revelam-se ainda mais severos e
difíceis de "digerir" na posteridade de um ciclo de crédito apoiado
na valorização fictícia de ativos.
A emergência da crise da dívida soberana a
partir do colapso do endividamento privado exige uma intervenção não
convencional das autoridades monetárias. Só elas são capazes de ampliar os
seus balanços para absorver o choque entre credores e devedores. Deixados à sua
própria sorte, os bancos privados não podem explicitar a desvalorização que
contamina seus ativos e os devedores não suportam a insistência dos
"mercados" em manter o valor nominal das dívidas.
As recomendações de Soros serão certamente
desqualificadas como radicais pelos tíbios e vacilantes. Mas, elas vão à raiz
dos problemas que afligem a economia europeia. Na Europa, a encrenca é sistêmica:
o crédito está travado porque os bancos desconfiam de tudo e de todos,
inclusive deles mesmos. A rede de pagamentos e de provimento de liquidez
formada pelo sistema bancário europeu está à beira da hecatombe. Esse
colapso da confiança não pode ser superado sem a centralização das decisões na
autoridade monetária encarregada de zelar pela higidez das relações
interbancárias e, portanto, pela "normalidade" das operações de
crédito. Na ausência de um programa de refinanciamento e de transferências
confiável, a "saída" mais provável é o default desorganizado da
Grécia, a derrocada do valor dos títulos soberanos e a insolvência de grandes
instituições financeiras europeias - não só as gregas, portuguesas e espanholas
- mas também francesas e alemãs.
Nenhum comentário:
Postar um comentário