Carlos
Lessa, no VALOR ECONÔMICO, em seu artigo mensal: “A presidente sabe”.
A
presidente é economista, com sólida formação e ampla informação. Foi ministra
do vetor-chave do desenvolvimento: a energia. Conviveu e teve assessoria
pessoal de Maria da Conceição Tavares, uma das mais brilhantes inteligências do
Brasil.
A
presidente sabe que a crise mundial, explicitada em 2008, será de longa duração
e que o mundo pós-crise não é previsível, mas haverá a modificação geopolítica
do planeta, uma profunda onda de inovações tecnológicas e alteração em padrões
comportamentais.
A
presidente sabe que o futuro exige conhecimento das restrições para, no âmbito
do raio de manobra, serem a nação, o povo e sua economia uma folha ao vento da
história ou, com a vontade civilizatória e solidária do povo, explicitar e
desdobrar um projeto nacional. Cabe ao governante atuar no âmbito da manobra
com o olhar firme, coordenar os atores sociais a atuar em direção ao sonho de
um Brasil justo e próspero.
A
presidente sabe a perversa tendência do sistema financeiro de, em tempos de
crise, adotar políticas defensivas que aprofundam a crise. Keynes falava da
"preferência pela liquidez", que desvia as empresas da realização de
investimentos de ampliação de capacidade produtiva e passam a optar por aplicações
financeiras. As organizações bancárias e do mercado de capitais tendem a
restringir empréstimos e a optar por ampliar suas reservas de uso imediato. Ao
fazê-lo, "empoçam" recursos, e aprofundam a tendência à fase
depressiva da economia. O coletivo de empresas, acreditando na crise, adota uma
conduta que acelera e aprofunda a crise. No limite, participam de um estouro de
boiada que corre para o precipício.
A
presidente sabe que o Fed (Federal Reserve) adquiriu ativos podres e duvidosos
e injetou volumes colossais de recursos no sistema bancário americano.
Entretanto, esses bancos não estão reativando a economia; estão cautelosos no
crédito, prosseguem com a execução de hipotecas imobiliárias e paralisam a
atividade da construção civil. A família americana, sem planos de previdência
contratuais, hoje vê o futuro com angústia e decidiu pela contenção do consumo,
que aprofunda o processo depressivo. Os indicadores macroeconômicos dos EUA
são inquietantes.
A
presidente sabe que os bancos da zona do euro não conseguem coordenar suas
políticas nacionais, e tendem a praticar um contracionismo que sinaliza
persistência e aprofundamento da crise. Os bancos da zona do euro estão
"empoçando" e a Suíça, com medo de uma corrida pelos francos, alinhou
sua moeda com o euro.
A
presidente sabe que tanto os EUA quanto a comunidade europeia estão reduzindo
importações. A China, que vinha sustentando o crescimento, vem perdendo ímpeto
e já sinaliza procedimentos de reforço de seus bancos oficiais (para evitar a
queda das Bolsas chinesas, o governo está recomprando ações de seus bancos dos
acionistas privados minoritários).
A
presidente sabe que a Bolsa de Mercadorias de Chicago sustenta os preços
relativos de alimentos, de algumas matérias primas e do petróleo. Há uma
preferência crescente dos especuladores mundiais por aplicações arbitradas pela
Bolsa de Mercadorias de Chicago, porém o sinal pode mudar.
A
presidente sabe que, frente à crise mundial, o Brasil deve "botar suas
barbas de molho". Felizmente, temos o Banco do Brasil, a Caixa Econômica e
o BNDES, que respondem à orientação soberana nacional de não participar da
manada (Lula teve que trocar o presidente do BB para forçar nosso maior banco a
expandir crédito).
A
presidente sabe que o Bradesco já anunciou a criação de um fundo de R$ 1 bilhão
para ter "liquidez preventiva" em relação à inadimplência privada. A
presidente sabe que é importante reforçar o sistema bancário oficial e expandir
o crédito e reduzir os juros básicos. A presidente, corretamente, quer
estimular a construção civil em um programa de habitação popular. Obviamente,
para a geração de emprego e renda, essa é a política social anticrise por
excelência, porém sabe que tem que reduzir a gula dos empreiteiros. Manter a
demanda interna ampliando o endividamento familiar com compra de veículos
automotores e outros bens duráveis tem um efeito macrodinâmico menor e é
patrimonialmente equivocada em relação à família brasileira. Talvez seja esse o
sentido profundo da enigmática recomendação presidencial: "o brasileiro deve
consumir com moderação".
Uma
economista competente não diria essa frase (que parece aplicável a bebida) se
não estivesse pensando em desviar as famílias da armadilha da compra de
duráveis, orientando-as para a ativação da construção civil. Acho inteligente
reforçar os fundos imobiliários com aplicações financeiras da previdência
complementar, porém é necessário planejar o futuro das cidades e ampliar o
investimento na infraestrutura urbana.
A
presidente sabe que é possível e necessário fazer muito mais. O câmbio tem que
voltar a ser controlado.
O Brasil não deve estimular empresas brasileiras a investirem no exterior
(recentemente, duas indústrias de calçados do Rio Grande do Sul anunciaram que
vão deslocar suas operações para a Nicarágua em busca de mão de obra barata e
menor intervenção do Estado). O sistema bancário oficial deve retirar qualquer
apoio a essa atitude anti-nacional. O fomento público deve ser preferencial a
empresas de brasileiros. As filiais de multi, na crise, tendem a ampliar
remessas para as matrizes. Há um espaço para a empresa de brasileiros crescer,
orientada para o mercado interno. As filiais terão que reduzir remessas para
manter suas posições de mercado.
Presidente,
a desvalorização do real aumenta a rentabilidade das exportações primárias mas
encarecem itens básicos da alimentação popular. É indispensável a recriação do
imposto de exportação, se houver a desvalorização previsível. Devemos
selecionar com critério aplicações financeiras do exterior, reduzir o
endividamento com risco cambial do setor privado, ampliar a proteção a ramos
industriais clássicos, e adotar uma política pública de "comprar o produto
brasileiro".
A
presidente está informada das pressões externas. Algumas deveriam ser
ridicularizadas: as associações americanas de indústrias de confecção e
calçados protestaram contra a adoção, pelo Brasil, de medidas defensivas desses
ramos industriais clássicos e ameaçados. Quero crer que são as matrizes
interessadas em que suas filiais na China ampliem a avalanche de exportações para
o Brasil. No Japão, surgiram resmungos quanto aos obstáculos para importações
de veículos pelo Brasil.
Somente
critico a presidente pela modéstia das medidas. Outra presidente sul-americana,
que vem adotando medidas radicais de defesa nacional, acabou de receber uma
reeleição consagradora. A timidez não é sábia em momentos de crise mundial.
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