Demétrio Magnoli, sociólogo e
doutor em Geografia Humana pela USP, hoje, especialmente para o ESTADÃO.
"Sem o euro não existe
Europa", constatou Angela Merkel, no mesmo discurso em que assegurou que
não haverá uma "união da dívida". As afirmações, contraditórias entre
si, refletem imperativos diferentes. A primeira é uma homenagem prestada à
História - ou seja, ao projeto supranacional da União Europeia. A segunda
expressa a vontade dos eleitores alemães - ou seja, a existência do
Estado-nação. Agora, diante da iminente falência grega e do espectro de um
colapso bancário em série, a chanceler alemã deve escolher entre uma e outra,
pois não pode ter as duas.
História, no caso da Europa,
significa uma catástrofe única, que devastou o sistema moderno de Estados
erguido na Paz da Westfalia, em 1648, e reconstruído no Congresso de Viena, em
1815. A União Europeia, um fruto da catástrofe, é filha de Stalin e de Hitler.
Stalin: o projeto europeu
emanou das circunstâncias da guerra fria, na forma de uma aliança entre a
França e a Alemanha, antigas rivais separadas pelos ressentimentos acumulados
em três guerras sucessivas. O ato inicial da Europa foi o Plano Schuman, de
criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (Ceca), em maio de 1950,
meses depois da fundação da Alemanha Ocidental e da Organização do Tratado do
Atlântico Norte (Otan). À sombra ameaçadora da URSS, a unidade da Europa
Ocidental era o complemento necessário para a aliança transatlântica com os
EUA.
Hitler: o projeto europeu
emanou das ruínas fumegantes da 2.ª Guerra Mundial, o testemunho do colapso de
um sistema baseado na soberania absoluta dos Estados. A ideia genial do francês
Jean Monnet, de compartilhamento de soberanias, representou a solução para uma
civilização destruída pelo nacionalismo sem freios. O ingresso da Alemanha
Ocidental na Otan implicava o rearmamento alemão, apenas cinco anos depois da
libertação de Paris. A Ceca foi o intercâmbio que o propiciou: no altar da
aliança com a França, a Alemanha sacrificou sua supremacia nacional na
indústria siderúrgica, a fonte do aço e das armas.
Numa prova de que a
paternidade de Hitler é mais forte que a de Stalin, o encerramento da guerra
fria não provocou a dissolução do projeto europeu, mas o seu avanço para um
novo patamar. A reunificação alemã, em 1990, reativou as assombrações de um
passado perene. Então, o espírito de Monnet inspirou François Mitterrand e
Helmut Kohl a formularem uma segunda grande barganha, coagulada no Tratado de
Maastricht, de 1992: "Toda a Alemanha para Kohl, metade do marco alemão
para Mitterrand", na síntese proporcionada por uma ironia realista. A
introdução do euro representou um novo sacrifício alemão, desta vez da
supremacia nacional monetária, no altar da unidade europeia. O compromisso
reafirmado de uma "Alemanha europeia" deveria afastar para sempre os
temores estrangeiros e as tentações nacionais sobre a "Europa alemã".
"Estados Unidos da
Europa" - a ousada fórmula de Monnet para um mundo pós-nacional ganhou uma
materialidade mais prosaica na Comunidade Europeia, inaugurada em 1957. O gesto
fundador deu-se em Roma, cercado por um simbolismo elétrico. Roma é a metáfora
do Império, isto é, o oposto perfeito da nação. O Estado-nação é o poder de uma
entidade política singular e homogênea, que exerce sua soberania num sistema
internacional de Estados soberanos. O Império é o poder universal de um
soberano, que se exerce sobre uma miríade heterogênea de povos. O mito da
restauração de Roma, a memória abstrata de um tempo de unidade, pairava sobre
os estadistas que fundaram a Comunidade Europeia.
A força foi a ferramenta das
diversas tentativas medievais e modernas de reinvenção de Roma. Tratava-se, mais
de meio século atrás, de restaurá-la pelo instrumento do consenso. Mas, mesmo
depois de Maastricht, a realidade nunca se confundiu com o mito. A Europa que
se veste com as roupagens do Império é uma comunidade de Estados nacionais.
Além da esfera de soberanias compartilhadas, subsistem as nações, com seus
sistemas políticos próprios, suas leis singulares e seus governos particulares.
Quando a tempestade ameaça varrer o euro e toda a herança de Monnet, os
holofotes iluminam os encontros entre os chefes de governo da Alemanha e da
França, não a Comissão Europeia ou os burocratas que ninguém elegeu instalados
na ilha europeia de Bruxelas.
Há duas décadas, Kohl invocou
a promessa sagrada da unidade alemã para convencer os eleitores de que os
alemães orientais eram concidadãos e, por isso, valia a pena subsidiar a troca
de marcos orientais na equivalência artificial de um para um. Angela Merkel
carece do argumento de Kohl, quando se trata de gregos, portugueses, irlandeses
espanhóis ou italianos. Uma coluna da revista britânica The Economist registra
que a palavra alemã Schulden, que significa "dívida", deriva de
Schuld, cujo significado é "culpa". A tradição luterana se mescla à
vívida memória da hiperinflação da República de Weimar para formar um denso
caldo de resistência às propostas de resgate europeu dos países endividados. A
ideia de união fiscal, contrapartida aparentemente indispensável à união
monetária, assumiria a forma imediata de uma "união da dívida", pela
emissão de títulos europeus ou por um aumento dramático nos recursos do Fundo
Europeu de Estabilidade Financeira. Mas é precisamente isso que Angela Merkel
qualificou como inaceitável.
Quanto vale a Europa?
Sondagens de opinião entre os alemães revelam uma rejeição majoritária a novos
pacotes de salvamento dos países que rondam o precipício. Simetricamente, entre
os gregos, uma sólida maioria recusa a transferência da soberania popular sobre
a economia nacional para Berlim e Bruxelas, condição quase explícita do plano
de resgate em curso. Angela Merkel tem dias, talvez semanas, para começar a
falar sobre Stalin e Hitler. O valor da Europa depende do eco que, tanto tempo
depois, ainda puder gerar a menção desses nomes sinistros.