Antonio
Delfim Netto, hoje no VALOR ECONÔMICO, escreve sobre “Homem e trabalho”.
A
organização social em que vivemos é produto de um processo histórico. O homem,
ao construir o mundo com seu trabalho, exerce uma pressão seletiva no sentido
de aumentar a sua liberdade de expressão, o que exige cada vez maior eficácia
produtiva. Há uma evolução simultânea, civilizatória e quase biológica, que
amplia o altruísmo e a solidariedade social, exatamente porque a cooperação é
mais "produtiva" e libera mais tempo para a expressão criativa do
homem.
Uma
das construções mais impressionantes de Marx é a sua leitura do papel do
trabalho nos "Manuscritos" de 1844, antes dele ter sido seduzido por Ricardo.
O trabalho é o processo pelo qual o homem se produz e projeta fora dele as
condições de sua existência e a sua capacidade de transformar o mundo.
No
atual estágio evolutivo, a sociedade divide-se entre os que têm capital e
"empregam" o trabalho em troca de salário, e os que detêm a força de
trabalho e só podem utilizá-la "alugando-a" ao capital, em troca de
salário. Com as políticas sociais, o Estado do Bem-Estar transformou
(transitoriamente!) o sistema salarial alienante de Marx no símbolo da segurança
do trabalho. Ele dá, por sua vez, a garantia para o funcionamento das
instituições da nossa organização social, particularmente os mercados e a
propriedade privada.
Os
economistas precisam incorporar, como disse Mauss ("Sociologie et
Anthropologie", 1950), que o trabalho é o "fato global". O
desemprego involuntário é o impedimento insuperável do cidadão de incorporar-se
à sociedade. Por motivos que independem de sua vontade, ele não pode sustentar
honestamente a si e à sua família. O desemprego involuntário é o "mal
social global"! Não importam as filosofias ou as ideologias. No presente
estágio evolutivo da organização social que o homem continua procurando para
fazer florescer plenamente a sua humanidade, é a natureza e a qualidade do seu
trabalho que o coloca na sua posição social e econômica, que afeta sua situação
física e emocional e que determina o nível do seu bem-estar.
É
com esse sentido do papel do trabalho, com o qual o homem se constrói e produz
um mundo onde tenta acomodar-se numa estrutura social conveniente, que devemos
entender os protestos dos "indignados com Wall Street", que se
espalham por todo os EUA. Não se trata de "excluídos" sociais (talvez
alguns deles o sejam), mas de cidadãos honestos, educados e que até bem pouco
tempo tinham a oportunidade de ganhar a sua vida, sustentar a sua família,
educar seus filhos, comprar sua casa, realizar, enfim, o "sonho
americano", com o qual os EUA venderam o lago azul ao mundo.
É
verdade que alguns deles já estão na terceira geração vivendo à custa dos
outros, graças à miopia e inércia de um Estado do Bem-Estar distraído, o que
faz a força do "Tea Party". Mas é verdade, também, que a renda média
do americano não cresce desde 1996 e que a distribuição de renda tem piorado.
Nada disso, entretanto, acendeu o fogo. O agente eficiente foi o nível de
desemprego de quase 10% por tempo longo e que parece não ter fim. O agente
eficiente foi a proteção ao sistema financeiro a cujos responsáveis o governo
protegeu de forma abusiva e entregou a execução das hipotecas, à custa de 25
milhões que perderam a âncora social do emprego organizado.
"Ocupar
Wall Street" é menos um protesto contra a economia de mercado e seus
problemas, do que o profundo sentimento de injustiça social derivado da
incapacidade do governo e do Banco Central, que permitiram, sob seus olhos
complacentes, a destruição do emprego e do patrimônio de incautos cidadãos,
assaltados livremente por um sistema financeiro desinibido com suas "inovações".
O
efeito final desse movimento será medido nas eleições de novembro de 2012. A
resposta imediata de Washington deve ser pequena a não ser, talvez, acender o
espírito de urgência do Executivo e estimular a resistência dos republicanos
para continuar a expô-lo como "responsável" pela crise. Mas o
desconforto é enorme. O presidente Obama referiu-se a ele ligeira e quase
temerosamente. O secretário do Tesouro Geithner empurrou a culpa para o sistema
financeiro, que "aumentou as tarifas bancárias em resposta aos novos
controles de Wall Street e aumentou a já existente irritação popular contra
ele". E o presidente do Fed, Bernanke, com aquela figura de Papai Noel
arrependido, limitou-se a afirmar que "as pessoas estão descontentes com o
estado da economia. Elas reprovam - e não sem razão - o setor financeiro pela
situação em que nos encontramos e estão descontentes com a resposta das
autoridades". Que autoridades? Obama, Geithner e Bernanke!
Quando
se trata de entender o verdadeiro papel do trabalho, os economistas do
"mainstream" saem mal na foto: tratam-no como um "fator de
produção", sujeito às leis da oferta e da procura. Por definição não há
desemprego "involuntário". Como disse um economista que viria a ser
nobelista, o desemprego em massa é apenas manifestação de "vagabundagem da
classe trabalhadora".
Na
mais recente versão do "The Palgrave Dictionary on Economics" (2008),
não há uma entrada para "trabalho". Ela é dissolvida e desidratada em
"disciplina do trabalho" e "economia do trabalho", com
ênfase no "capital humano". Trata-se do mesmo artigo da 1ª edição
(1987), ao qual se acrescentou o apêndice "As Novas Perspectivas da
Economia do Trabalho". Tudo muito pobre, técnico, abstrato e sem história,
como se a economia de mercado - codinome do atual capitalismo - estivesse
escrito no Big-Bang e destinada a nos acompanhar até o fim dos tempos...