Marcelo de Paiva Abreu,
escreve hoje no ESTADÃO sobre “Entre Pangloss e Cassandra”
Há alguns meses o espírito de Pangloss, o
personagem de Voltaire que só era capaz de ver razões para continuar otimista,
dominava a maioria das avaliações sobre a economia do Brasil - avaliações
reforçadas por diagnósticos internacionais que pareciam querer compensar o
excesso de pessimismo no passado com excesso de otimismo em relação ao futuro.
A capa da The Economist com o Cristo Redentor envolto em nuvens cinzentas no
início de 1999 (Storm clouds from Brazil), em meio à crise cambial,
custou a ser substituída por visão menos catastrófica. E, certamente, a capa do
final de 2009, com o Cristo sendo propelido por um foguete (Brazil takes off)
parece agora bem exagerada, subestimando os inúmeros obstáculos à retomada do
crescimento econômico acelerado e sustentado.
Menos Pangloss e mais Cassandra - figura
mitológica hoje associada ao pessimismo - é o que parece sugerir a disseminação
de iniciativas recentes nos Três Poderes da República.
Iniciativas do Poder Judiciário indicam
percepção inadequada de restrições orçamentárias e falta de sensibilidade
quanto aos anseios da sociedade civil e à capacidade institucional de fazer
justiça de forma equilibrada e expedita. É preocupante que as postulações
salariais sejam acompanhadas por esforços de preservação de regalias quanto a
direitos trabalhistas e que tenham como pano de fundo a constatação de que há
ações judiciais pendentes de decisão que estão comemorando o 50.º aniversário.
E que, no contexto de negociações salariais do Judiciário, sejam invocadas
razões ancoradas na independência de Poderes. Com o salário dos ministros do
Supremo Tribunal Federal (STF) definindo o teto salarial do funcionalismo
público nos Três Poderes, o impacto sobre as contas públicas seria desastroso.
Quanto ao Poder Legislativo, pouco há a
acrescentar a um diagnóstico que sublinhe o colapso de aderência mínima a
princípios éticos que se constata com base nas práticas fisiológicas de
políticos na administração pública e pelo esprit de corps maligno, evidenciado
em votação secreta sobre a cassação de deputada acusada de corrupção. O
único consolo é que tal diagnóstico da sociedade civil quanto ao modus operandi
do grosso da classe política não configura novidade, especialmente desde que o
PT dominou a tecnologia de administração de coalizões fisiológicas no início do
governo Lula.
Iniciativas do Poder Executivo estimularam
mais ainda a crescente desconfiança quanto às bases concretas que poderiam
justificar a persistência de otimismo com a economia do País. A decisão do
Banco Central (BC) de reduzir a taxa Selic, alegadamente lastreada em
diagnóstico pessimista sobre a evolução da economia mundial, preocupa menos do
que as reações que suscitou. Diversos ex-ministros da área econômica, com ampla
experiência em épocas em que decididamente não se podia falar de autonomia do
BC, manifestaram seu regozijo com a decisão, pois configuraria a reestatização
do BC e teria sacramentado o fim da crença em modelos monetários. Nesse coro de
congratulações, não faltou quem sublinhasse que decisões de política monetária
envolvem mais "arte" que ciência, ao contrário do que defendem
"sacerdotes" indevidamente comprometidos com o setor financeiro.
Há pelo menos dois problemas com tais análises. O
primeiro é que foram exatamente ministros que no passado promoveram a
aceleração inflacionária ou fracassaram em tentativa de estabilização - nos
dois casos, com crescimento medíocre - que demonstraram mais entusiasmo com a
audácia da política econômica atual de privilegiar o crescimento em detrimento
do regime de metas.
Terá faltado "arte"? É oportuno lembrar
Laurence Peter, do Peter Principle: "Só há uma coisa mais penosa do que
aprender com a experiência: é não aprender com a experiência". Tudo
o mais constante, acho que, às opiniões de sacerdotes enfáticos da
hiperinflação com estagnação, prefiro o que Pedro Malan, Gustavo Franco, Ilan
Goldfajn, Afonso Bevilaqua, Alexandre Schwartzman, Eduardo Loyo e Mário
Mesquita, entre outros, têm a dizer sobre o assunto. Afinal, tiveram
sucesso no controle da inflação, com algum crescimento.
O segundo problema são as alegações de que a
Selic tem sido mantida em níveis elevados porque isso interessa ao setor
financeiro. Trata-se de questão empírica sobre a qual não há evidência clara.
Mas, em qualquer caso, a ninguém ocorreria sugerir que o setor financeiro deixa
de tratar da melhor maneira possível a defesa dos seus interesses. Mas isso não
é sua característica exclusiva. Da mesma forma agem os industriais ou seus
áulicos que defendem sistematicamente proteção alta, ou generosos créditos
públicos subsidiados, ou Selic reduzida, ou câmbio desvalorizado. É um mundo
sem anjos.
A notória deterioração da governança mundial e
o aumento da probabilidade de recrudescimento da crise mundial - na esteira da
nova recessão nos EUA, das tensões da zona do euro e do arrefecimento do crescimento
chinês - deveriam servir de estímulo para que o Brasil evitasse a adoção de
políticas imprudentes ou simplesmente equivocadas. Os custos dos erros estão em
alta.
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