Ricardo Paes de Barros, um dos mais importantes formuladores de políticas públicas contra a desigualdade, é o entrevistado deste domingo na FOLHA. Quando a lucidez e a competência se faz maior que a política. Parabéns Ricardo!
Folha - Em que medida o fim da pobreza no cadastro reflete a erradicação
da pobreza real?
Ricardo Paes de Barros - A pobreza é um negócio
dinâmico. É como o desemprego: tem uma entrada a todo o momento e uma saída da
pobreza a todo o momento. Não há nenhum país do mundo que possa dizer:
"Hoje, eu não tenho nenhum pobre", porque sempre vai ter alguém que acabou
de se separar, perder o emprego, ficar doente.
Qual a dimensão histórica do anúncio da semana passada?
Essa é mais uma medida numa sequência e não vai ser a última. Porque a
pobreza, extrema pobreza, e várias outras questões sociais, vão perturbar a
sociedade brasileira o tempo todo. Se vencermos essa pobreza estrutural,
teremos agora que partir para essa pobreza mais volátil.
Acho que o que surpreende no Brasil da última década não é a queda na
desigualdade e na pobreza. É o fato de que essa queda aconteceu todo ano.
Uma pessoa que passou a ganhar R$ 72 deixou a miséria?
Ninguém sabe onde exatamente começa a miséria, mas acho que ninguém
chutaria muito mais do que R$ 100 e ninguém ia chutar alguma coisa perto de R$
50. Então R$ 70 não é um número absurdo. Acho que o que importa no Brasil é
dizer assim: "Ninguém neste país ganha menos do que R$ 70".
Amanhã, vamos garantir que ninguém ganhe menos do que R$ 80 e, depois de
amanhã, vamos garantir que ninguém ganhe menos do que R$ 90. Depois, menos de
R$ 100. Porque a gente sabe que miséria é relativa. Imagine um R$ 70 na região
metropolitana de São Paulo. É completamente diferente de R$ 70 em Jordão, no
Acre.
Essa linha não deveria ser corrigida pela inflação?
Certamente. Você dizer que R$ 70, ontem e hoje, é a mesma coisa não faz
sentido. Agora, não indexar [a linha] dá à sociedade controle sobre o Bolsa
Família. Se, no limite, você inventasse uma indexação no salário mínimo, na
taxa de crescimento do PIB por trabalhador, a sociedade iria estar presa a um
programa onde ela perdeu o controle.
Mas não soa falso dizer que em 2009 miséria é R$ 70 e que em 2013
miséria é R$ 70 ainda?
Acho difícil a argumentação de que a pobreza num ano é R$ 70, num outro
ano é R$ 70 também e que você não está medindo uma pobreza diferente no outro
ano. A questão é encontrar o equilíbrio entre regras de atualização e não
congelar o programa.
Até que ponto o Cadastro Único é fiel à realidade?
O final da história é saber o seguinte: programas com base no cadastro
estão bem focalizados? As pesquisas demonstram que programas que usam o
Cadastro Único acabam beneficiando prioritariamente os pobres.
Em parte o cadastro precisa melhorar, em parte ele é excepcional. Um
serviço feito pelo cadastro é dizer quem está dentro e quem está fora. E esse
trabalho foi muito bem feito. Se você, dentro do cadastro, escolhesse
aleatoriamente um cara para dar o Bolsa Família, você ia acertar com altas
chances.
O que explica a contínua queda da miséria no país?
A primeira coisa é entender que só 20%, 25% disso é Bolsa Família. O
restante é um conjunto de políticas que o governo fez quase que todo mês, toda
semana. Inclusive seria bom que a gente soubesse o impacto desses programas e a
gente não sabe.
Qual a diferença do governo tucano para o governo petista ao fazer política
social?
Nos governos, o PSDB tinha talvez uma ideia de que a pobreza era uma
coisa complexa, multidimensional, e só dar renda para as pessoas não
funcionava, ou seja, que precisava de uma política bem sofisticada etc.
Quando entra o presidente Lula, ele entra com uma coisa do tipo:
"Pobreza é uma coisa trivial, é ridículo, qualquer R$ 10 na mão do pobre
faz uma tremenda diferença, vamos parar com isso, qualquer coisa serve e o que
não servir depois a gente muda".
De repente você abre uma frente enorme, que não tem necessariamente uma
grande arquitetura lógica. A gente todo dia faz uma política de combate à
pobreza, essas políticas vão sendo acumuladas e a pobreza vai caindo.
O governo do PT então não é o único responsável pela queda na pobreza?
Claro. A desigualdade começa a despencar no ano 2000. Quer dizer, três
anos antes do governo Lula ela despenca e cai à mesma velocidade que ela cai
depois de 2003 [quando o PT chega ao poder]. E muitas dessas ações têm uma
defasagem -você faz hoje e o seu impacto é três, quatro anos depois. Acho que a
grande vantagem do Brasil é que tanto o governo do PT quanto o governo do PSDB
sempre tiveram um comprometimento total [com o combate à pobreza].
Qual deve ser o próximo gargalo a ser atacado para diminuir a desigualdade?
Acho que o grande legado desses dez anos é um conjunto de brasileiros
que abandonou uma estratégia de sobrevivência e passou a olhar para frente. É o
cara que parou de pensar: "Será que vou ter comida amanhã?" e passou
a perguntar para o filho: "Você fez o dever de casa de hoje?".
O grande desafio para a frente é o fortalecimento desses mecanismos de
ascensão. Como eu, governo, promovo um ambiente meritocrático que induza o povo
a se esforçar e pensar que eles vivem numa sociedade em que o cara que tem
talento e botar esforço vai lá para cima?
E não adianta o cara estar muito bem preparado se o ambiente econômico
não é um em que você tem grandes talentos, mas não bons postos de trabalho.
Tirar o cara lá da superpobreza você faz sem grandes investimentos.
Daqui para frente, se você não tiver investimentos em capital físico,
seja público seja privado, não tem política social que vá dar jeito. Acho que o
grande desafio está aí.