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domingo, 4 de abril de 2021

FHC: A hora se aproxima.

A única vantagem que os mais velhos podem eventualmente ter é que já viveram situações difíceis. Elas não deixaram saudades. Os que se aproximam dos 90 anos (questão de três meses no meu caso), passaram pela 2.ª Grande Guerra; viram a migração do Nordeste tocada pela pobreza e, mais tarde, a do Sul, abrindo fronteiras no Oeste e ocupando terras; passaram pelo golpe de 1937, viram outra vez, de lado político distinto, o movimento de 1964 (em ambos os momentos carreiras foram cortadas e, mesmo, vidas ceifadas, às vezes pela tortura) e viram a democracia voltar a ser um valor. A liberdade é como o ar que respiramos: sem nos darmos conta, é dele que vivemos. Basta cortá-lo para aparecerem consequências nefastas.


Daí que eu veja com apreensão o momento atual. O País sofre uma crise sanitária gravíssima (talvez só comparável ao que aconteceu na “gripe espanhola” em 1918-1919); ainda está com as dificuldades econômicas, devidas não apenas à recessão, mas também à utilização de tecnologias poupadoras de mão de obra, as quais, sem que haja dinamismo na produção, mostram com clareza as dificuldades para a obtenção de empregos. E, ainda por cima, temos um governo que não oferece o que mais precisamos: serenidade e segurança no rumo que estamos seguindo.


Nem tudo se deve à condução política do presidente da República. Convém repetir: ele foi eleito pela maioria e disse o que faria... Fez. E não deu certo. Em razão disso, para onde vai o País?


Primeiro, não julgo que seja suficiente distribuir “culpas”. Há várias culpas e vários culpados, interna e externamente. Sejamos realistas: ainda que o presidente fosse capaz de conter os seus ímpetos, não nos livraríamos do vírus que nos atormenta. Mas poderia haver menos mortos. A credibilidade dos que mandam é quase tão eficaz para conter desatinos como a competência dos serviços de saúde para evitar mortes.


A semana que passou dava a sensação (a meu ver, falsa) de que corríamos o risco da volta ao autoritarismo. O símile com situações autoritárias do passado não ajuda a entender as opções disponíveis. Houve, sim, uma forte movimentação de comandos militares. Mas, para dizer em termos simples, trocamos seis por meia dúzia.


Cada chefe militar tem, é natural, suas características e suas manias. Nenhum dos atuais comandantes, antigos ou novos nos postos, imagina que “um golpe” resolva a situação. Não sei o que se passa na cabeça presidencial, mas, ainda que desejasse um “golpe”, com que roupa? Basta ler as declarações dos militares que partiram ou dos que chegaram: quase todos falam em respeitar a Constituição e agir dentro da lei.


Não me parece haver clima, no País e na parte do mundo a que estamos mais vinculados, para aventuras. Dado o porte de nossa economia e a quantidade de questões sociais e econômicas a serem enfrentadas, por que uma pessoa razoável aumentaria as nossas angústias? E as que não são razoáveis? Estas precisam dispor de um clima favorável a suas loucuras, o que não me parece ser o caso.


Sendo assim, aumenta a responsabilidade de cada um dos cidadãos: devemos dizer, com firmeza, sim ao que queremos e não ao que nos assusta. Não é hora de calar, nem de fazer algazarra. Aproveitemos o quanto possível para, com equilíbrio, mostrar a insensatez de concentrar poderes nas mãos de quem quer que seja, pessoa ou instituição.


Defendamos a Constituição da República, que é democrática, e saudemos os políticos que creem que é melhor apoiar quem possa chegar à Presidência sem representar um extremo. Apresentemos aos brasileiros, quanto antes, um programa de ação realista, que permita juntar ao redor dele os partidos e as pessoas para formar um centro que seja progressista, social e economicamente. Centro que não pode ser anódino: terá lado, o da maioria, o dos pobres; mas não só, também o dos que têm visão de Brasil e os que são aptos para produzir.


Quem personificará esse centro? É cedo para saber. É cedo para “fulanizar”, como diria Ulysses Guimarães. Mas é hora de promover a junção das forças capazes de se contrapor a eventuais estrebuchamentos autoritários, antes que surjam propostas que nos levem a eles.


Vejo que alguns políticos se dispõem a agir para evitar que a mesmice predomine. Pelo menos é o que deduzo das declarações recentes de vários líderes da vida brasileira. A eles juntarei minha voz. Sei das minhas limitações e não tenho a ilusão de que, ao escrever que a eles me juntarei, a situação mudará. Mas se cada um dos brasileiros se dispuser a falar e a agir, é de esperar um futuro melhor.


Na política, como na vida, ou se acredita que é possível mudar e obter uma algo melhor, ou se morre por antecipação. Continuemos, pois, vivendo: propondo mudanças, sempre com a expectativa de que elas possam ser realizadas e com elas o Brasil ficará melhor.

SOCIÓLOGO, FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA

https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,a-hora-se-aproxima,70003669535

domingo, 4 de outubro de 2020

FHC: Dias sombrios.

Fernando Henrique Cardoso*, O Estado de S.Paulo

03 de outubro de 2020 | 21h00

Os dias andam sombrios. A pandemia tolda o horizonte e os corações. Cansa ficar em casa, isso para quem tem casa e pode trabalhar nela. Imagine-se para os mais desafortunados: é fácil dizer “fiquem em casa”, impossível é ficar nela quando não se a tem ou quando as pessoas vivem amontoadas, crianças, velhos e adultos, todos juntos. Pior, muitos de nós nos desacostumamos de “ver” as diferenças e as tomamos como naturais. Não são. 

Eu moro num bairro de classe média alta, Higienópolis. Não preciso andar muito para ver quem não tem casa: numa escadaria que liga minha rua a outra, há uma pessoa que a habita. Sei até como se chama. Sei não porque eu tenha ido falar com ela, mas porque minha mulher se comove e de vez em quando leva algo para que coma. Assim, ilusoriamente, tenho a impressão de “solidariedade cumprida”, não por mim, mas por ela, que atua...

Mesmo quando vou trabalhar, na Rua Formosa esquina com o Vale do Anhangabaú, é fácil ver quanta gente “perambula” e à noite dorme na rua. Agora, com as obras de renovação, fazem-se chafarizes, que serão coloridos. Pergunto: será que os moradores de rua vão se banhar nas águas azuladas das fontes luminosas?

Não há que desesperar, contudo. Conheci Nova York e mesmo São Francisco em épocas passadas, quando as ruas também eram habitadas por pessoas “sem teto”. Elas não aparecem mais onde antes estavam e eram vistas. Terão melhorado de vida ou foram “enxotadas” para mais longe? Também em Paris havia os clochards. Que destino tiveram: o crescimento da economia absorveu-os ou simplesmente foram “deslocados”, pelo menos da vista dos mais bem situados? Crueldade, mas corriqueira. 

É certo que o vírus da covid parece começar a ser vencido no Brasil, como os jornais disseram ainda na semana passada. Mas continuamos numa zona de risco. A incerteza perdura. Comportamentos responsáveis salvam vidas. Os países europeus que tinham controlado uma primeira onde se veem às voltas com novo surto de contaminações e hospitais no ponto de saturação. Qual de nós não perdeu uma pessoa querida? Essa dor não se esquece nem se apaga. 

Mas, e depois? O desemprego não desaparece de repente. Para que a situação melhore não basta haver investimentos, é preciso melhorar as escolas, a formação das pessoas. Sem falar na saúde. E os governos precisarão ser mais ativos, olhando para as necessidades dos que mais requerem apoio.

É por isso que, mesmo teimando em ser otimista, vejo o horizonte carregado. Para retomar o crescimento, criar empregos (sem falar da distribuição de rendas) e manter a estabilidade política necessária para os investidores confiarem na economia é preciso algum descortino. Os que nos lideram foram eleitos, têm legitimidade, mas nem por isso têm sempre a lucidez necessária.

Não desejo nem posso precipitar o andamento do processo político. É melhor esperar que se escoe o tempo de duração constitucional dos mandatos e, principalmente, que apareçam “bons candidatos”. Para tal não é suficiente ser “bom de voto” e de palavras. Precisamos de líderes que entendam melhor o que acontece na produção e no mercado de trabalho, daqui e do mundo. Mais ainda que sejam capazes de falar à população, passar confiança e esperança em dias melhores. Voz e mensagem movem montanhas. Mobilizam energias e vontades. 

Enquanto isso... Sei que não há fórmulas mágicas e acho necessário dar meios de vida aos que precisam. Sei que foi o Congresso, mais do que o Executivo, quem cuidou de dá-los. O presidente atual vai trombetear que fez o que os parlamentares fizeram; não importa, está feito e teria de o ser. Não tenhamos dúvidas, contudo: o nível do endividamento público, que já é elevado, vai piorar. 

Compreendo as aflições do governo: quer logo um plano para aliviar o sofrimento popular e não quer cortar gastos. É difícil mesmo.

Mas assim não dá: ou bem se ajusta o orçamento aos tempos bicudos que vivemos ou, pior, voltarão a inflação e o endividamento, e, quem sabe, as taxas de juros de longo prazo continuarão a subir... Melhor nem falar. 

Que teremos nuvens carregadas pela frente, isso parece certo. Mas é melhor que chova logo, antes que as trovoadas se transformem em tempestades.

O presidente parece querer, ao mesmo tempo, coisas que não são compatíveis. A única saída razoável para esse dilema é apostar numa reforma administrativa que valha para os atuais servidores, acompanhada de algumas medidas de desindexação de despesas. Juntamente com a reforma, o governo poderia mexer na regra do teto, para, ao mesmo tempo, abrir espaço orçamentário para o gasto e não provocar uma reação muito negativa do mercado. 

Governar é escolher. O problema é que o presidente não quer arcar com o custo das escolhas possíveis. Melhor seria arcar com a perda de popularidade no momento, desde que mais adiante se veja o céu menos carregado. Para isso é preciso ser líder, de corpo e alma. Não basta pensar que se é “mito”.

*SOCIÓLOGO, FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA


https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,dias-sombrios,70003462505

domingo, 6 de setembro de 2020

FHC: Reeleição e crises.


Fernando Henrique Cardoso, O Estado de S.Paulo
05 de setembro de 2020 | 21h00

Recordo-me da visita que André Malraux, na ocasião ministro da Cultura de De Gaulle, fez ao Brasil. Esteve na USP, na Rua Maria Antônia, onde funcionava a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, e expôs no “grande auditório” (que comportava não mais que umas cem pessoas) sua visão de Brasília, obra de Juscelino Kubitschek. Malraux estava extasiado, comparava o plano diretor da cidade não a um pássaro (coisa habitual na época), mas a uma cruz. Com sua verve inigualável, dizia em francês o que não estávamos acostumados a ouvir em português: fazia o elogio da obra. 

Esse não era, contudo, o sentimento predominante, pois víamos Brasília mais como desperdício, que induzia à inflação, do que como um “sonho”, um símbolo.

A visão dominante era negativa, principalmente no Rio de Janeiro (que perderia a condição de capital da República), em São Paulo e daqui para o sul. O gasto era grande e os recursos, minguados.

Eu compartilhava esse sentimento negativo, e olha que um de meus bisavôs fizera parte, no Império, da “missão Cruls”, que demarcara o território da futura capital do Brasil... Brasília foi construída onde desde aquela época se previa fazer a capital do País.

Não é que Malraux tinha razão? Não que a obra deixasse de ser custosa ou mesmo impulsionadora da inflação. Mas um país também se constrói com projetos, sonhos e, quem sabe, alguns devaneios...

Juscelino fez muitas coisas, algumas más, mas não é por elas que é lembrado. Brasília, sim, ficou como sua marca. 

Não o conheci. Vi-o pessoalmente uma vez, sentado, solitário, num banco no aeroporto de “sua” cidade. Aproximei-me e o saudei; pouca conversa, mas muita admiração. Ele já havia sido “cassado”. Passa o tempo e fica na memória das pessoas sua “obra”, Brasília.

Não estou recomendando que Bolsonaro faça algo semelhante. Não sou ingênuo para pretender que minhas palavras cheguem ao presidente e, se chegarem, sejam ouvidas... Como estive no Planalto, às vezes me ponho no lugar de quem ocupa aquela cadeira espinhosa: é normal a obsessão por fazer algo, para o povo e para o País. Como o presidente será julgado são outros quinhentos. Maquiavel já notava que os chefes de Estado (os grandes homens... na linguagem dele) dependem não só de astúcia, mas da fortuna (da sorte).

O governo atual não teve sorte. São de desanimar os fatores contrários: a pandemia, logo depois de uma crise econômica que vem de antes, com o produto interno bruto (PIB) crescendo pouco (se é que...), e uma “base política” que depende, como sempre, mais do “dá lá toma cá” do que da adesão popular a algo grandioso. Ganhou e levou; mas mais pelo negativo (o não ao PT e aos desatinos financeiros praticados) do que pelo sim a uma agenda positiva.

Agora se tem a sensação (pelo menos, eu tenho) de que o presidente não está bem acomodado na cadeira que ganhou. É difícil mesmo. De economia sabe pouco; fez o devido: transferiu as decisões para um “posto Ipiranga”. Este trombou com a crise, pela qual não é responsável. Não importa, vai pagar o preço: tudo o que era seu sonho, cortar gastos, por exemplo, vira pesadelo, terá de autorizá-los. E pior: como é economista, sabe que a dívida interna cresce depressa, e sem existir mais a alternativa da inflação, que tornava aparentemente possível fazer o que os presidentes querem – atender a todos ou à maioria e ganhar a reeleição. Só resta o falatório vazio. Este cansa e é ineficaz num Congresso que, no geral, também quer gastar e igualmente pensa nas eleições.

Cabe aqui um “mea culpa”. Permiti, e por fim aceitei, o instituto da reeleição. Verdade que, ainda no primeiro mandato, fiz um discurso no Itamaraty anunciando que “as trevas” se aproximavam: pediríamos socorro ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Não é desculpa. Sabia, e continuo pensando assim, que um mandato de quatro anos é pouco para “fazer algo”. Tinha em mente o que acontece nos Estados Unidos. Visto de hoje, entretanto, imaginar que os presidentes não farão o impossível para ganhar a reeleição é ingenuidade.

Eu procurei me conter. Apesar disso, fui acusado de “haver comprado” votos favoráveis à tese da reeleição no Congresso. De pouco vale desmentir e dizer que a maioria da população e do Congresso era favorável à minha reeleição: temiam a vitória... do Lula. Devo reconhecer que historicamente foi um erro: se quatro anos são insuficientes e seis parecem ser muito tempo, em vez de pedir que no quarto ano o eleitorado dê um voto de tipo “plebiscitário”, seria preferível termos um mandato de cinco anos e ponto final.

Caso contrário, volto ao tema, o ministro da Economia, por mais que queira ser racional, terá de fazer a vontade do presidente. Não há o que a faça parar, muito menos um ajuste fiscal, por mais necessário que seja. E tudo o que o presidente fizer será visto pelas mídias, como é natural, como atos preparatórios da reeleição. Sejam ou não. 

Acabar com o instituto da reeleição e, quem sabe, propor uma forma mais “distritalizada” de voto são mudanças a serem feitas. Esperemos...

SOCIÓLOGO, FOI PRESIDENTE DA REPÚBICA

domingo, 2 de agosto de 2020

FHC: Dois centenários - Celso Furtado e Florestan Fernandes.

https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,dois-centenarios,70003384262

Fernando Henrique Cardoso, O Estado de S.Paulo

02 de agosto de 2020 | 03h00

O ser humano é dotado de memória. Mas também se esquece. Há, contudo, pessoas que se transformam em ícones: essas não há como esquecer. Este ano, 2020, se vivos estivessem, e não só em nossa memória, fariam 100 anos Celso Furtado e Florestan Fernandes. Um deixou marcas na economia, o outro na sociologia. Ambos, em nossa história intelectual.

Conheci bem os dois. Fui formado na Faculdade de Filosofia da USP por muitos “mestres”. No meu caso, nenhum foi mais importante do que Florestan, desde que me deu um curso introdutório, em 1949. Celso conheci quando eu fazia, em 1962, uma pesquisa sobre o papel dos empresários no desenvolvimento econômico e fui ao Recife, com Leôncio Martins Rodrigues, para entrevistar alguns deles. Celso, então, já era diretor-superintendente da Sudene. Posso tê-lo visto antes em alguma conferência em São Paulo – também minha memória, aos poucos, está repleta de esquecimentos...

Não me esqueço, porém, de dois episódios. Fomos procurá-lo em seu apartamento, modesto, na Praia de Boa Viagem. Emprestou-nos um jipe da Sudene, com um motorista. Aproveitamos a visita que um casal de jornalistas iugoslavos faria ao Engenho da Galileia, famoso pelas ocupações de Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas, para conhecermos a Zona da Mata. Anos mais tarde, eu detido na Oban, fui minuciosamente inquirido sobre os dois “comunistas” que haviam ido comigo àquelas plagas. Não os conhecia, foram apenas companheiros de viagem. O motorista era também informante da polícia...

Quando Celso e eu já éramos amigos, estava em Barcelona, no inverno de 1986, visitando minha filha Beatriz, que estudava lá. Uma bela manhã tocou o telefone. Era Celso, queria saber se eu também seria nomeado ministro, pois ele fora convidado por José Sarney para ocupar a pasta da Cultura. Teria de deixar a Embaixada do Brasil junto à Comunidade Europeia, em Bruxelas, para onde fora nomeado. Celso, servidor público por excelência, além de grande intelectual, era falado para outros ministérios, como o da Fazenda ou do Planejamento. Coube-lhe o da Cultura, que organizou e ao qual emprestou o prestígio de seu nome.

Disse-lhe que eu não poderia sequer ser cogitado para uma função ministerial porque era senador exercendo a suplência e quem ocuparia minha função no Senado seria o segundo suplente, que era prefeito de Campinas. Teria de renunciar à prefeitura para assumir o Senado. Aconselhei-o a aceitar o ministério, sem que me houvesse perguntado.

Quiseram os fatos que fôssemos amigos. Em Paris, mais de uma vez fiquei no seu apartamento. Da mesma maneira, inúmeras vezes Celso ficou em meu apartamento em Brasília quando eu era senador. Também frequentes foram nossos encontros quando morávamos na França. Ao longo de 1961, Celso, Luciano Martins, de quem ele era muito chegado, eu, e, eventualmente, Waldir Pires almoçávamos juntos.

A amizade, que se manteve, nunca me fez esquecer que foi com seus livros, especialmente A Formação Econômica do Brasil, que comecei a entender as mudanças que ocorreram no País.

Quando, em 1964, estivemos (Celso por alguns meses antes de ir para Yale) a viver em Santiago, moramos juntos. E conosco Francisco Weffort e Wilson Cantoni. Celso havia trabalhado antes na Cepal e, além de ser amigo dos economistas chilenos, era admirado por Prebisch, nosso inspirador e chefe do Ilpes e do BID.

Não sei de outro economista (mais do que isso: cientista social) que tenha influenciado tanto a minha geração como Celso. E muitas outras mais. Não só pelo que renovou na visão sobre a economia (somando Keynes a Prebisch e Kaldor), mas como homem público exemplar.

Inteligente, culto e modesto. Dele as gerações futuras não apenas se recordarão, como lhe serão agradecidas. Celso mostrou-nos o quanto a economia brasileira se integrava à economia mundial e como sem uma ação do Estado teria sido impossível (ou muito mais difícil) avançar tanto quanto avançou. Além do mais, sabia escrever: iniciara a vida na literatura.

O mesmo digo sobre Florestan Fernandes: homem de cultura enciclopédica, conhecia tanto sociologia como antropologia e os escritos dos economistas clássicos não eram misteriosos para ele. De Marx a François Simiand, conhecia-os bem. Mais do que isso: desvendou não só os males da escravidão e dos preconceitos de cor, como também mostrou as bases burguesas em que se assentava o poder no Brasil. Amava as pesquisas, tanto as sociológicas como as antropológicas, mas sabia que sem hipóteses os dados não falam. Sabia interpretar o que conhecia pelas pesquisas. A ele devo o ter-me dedicado à sociologia, que era sua paixão.

Do mesmo modo que no caso de Celso, os escritos de Florestan vieram para ficar. Tanto os sobre A Organização Social dos Tupinambá e A Função Social Da Guerra Na Sociedade Tupinambá, como os estudos sobre os negros no Brasil e sobre o caráter pouco democrático da nossa forma de viver e, sobretudo, de mandar. É de intelectuais dessa têmpera que o Brasil precisa. Que pesquisem e saibam antever o que pode acontecer. Sem medos nem arrogâncias. Com sabedoria.

SOCIÓLOGO, FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA

domingo, 7 de junho de 2020

FHC: Tempos incertos.


São tempos incertos. Neles, a liderança deve apelar à racionalidade, ao bom senso, ao sentimento de solidariedade e de comunhão nacional, admitir que não há caminhos fáceis nem soluções mágicas, mas que o país deverá buscá-los de braços dados. O Brasil tem vulnerabilidades, a começar por seus grandes aglomerados urbanos onde milhões de pessoas vivem do trabalho informal e habitam moradias precárias. Sem falar dos desempregados e mesmo dos que perderam condições para se empregarem. Tem limitações fiscais, que podem e devem ser flexibilizadas num momento de emergência social e econômica, porém não podem ser desconsideradas. Mas o Brasil também tem ativos: o SUS, instituições de pesquisa científica como a Fiocruz, universidades como a USP e várias outras, epidemiologistas de categoria internacional, militares devotados ao serviço público, uma sociedade civil solidária e ativa, governadores e prefeitos que arregaçaram as mangas para enfrentar o desafio, uma imprensa atenta e instituições públicas de controle capazes de zelar pelo bem comum etc.

domingo, 5 de abril de 2020

FHC hoje no O GLOBO: Durante e depois da crise.

Sem diminuir a importância dessas iniciativas, a ação decisiva é dos governos. Os economistas não sabem qual será a profundidade da crise e em quanto tempo virá a recuperação. Mas em um ponto a maioria concorda: às favas (por ora!) a ortodoxia e os ajustes fiscais. Voltamos aos tempos de Keynes e, quem sabe, os mais apressados deixarão de jogar os “social-democratas” na lata de lixo da História. Os governos, e não só o daqui, começam a perceber que é melhor gastar já e salvar vidas do que manter a higidez fiscal e produzir cadáveres e depressão econômica. A dívida pública vai aumentar. Depois se verá como pagá-la. Este se é dúbio: em geral, a maior parte da conta vai para o conjunto da população e não para os que mais podem. Terá de haver mobilização política para que desta vez seja diferente.

domingo, 6 de agosto de 2017

Fernando Henrique Cardoso: Convicção e esperança.

"Diante do desmazelo dos partidos, da descrença e dos fatos negativos (não só a corrupção, mas o desemprego, as desigualdades e a falta de crença no rumo) é preciso responder com convicções, direção segura e reconstrução dos caminhos para o futuro. Isso não significa desconhecer que existam conflitos, incluídos os de classe, nem propor que política se faça só com “os bons”. Significa que chegou a hora de buscar os mínimos denominadores comuns que nos permitam ultrapassar o impasse de mal-estar e pessimismo".

domingo, 4 de junho de 2017

FHC: As responsabilidades históricas.


Os políticos responsáveis sabem que qualquer arranjo político deve considerar suas consequências para os 14 milhões de desempregados e, portanto, para o crescimento da economia. Tampouco devem esquecer-se de que a população está indignada com a corrupção sistêmica que atingiu os partidos, o governo e parte das empresas. Portanto, chegou a hora de buscar o mínimo denominador comum que fortaleça a democracia e represente um desafogo para o povo, aflito com a falta de emprego e de renda. E indignado com a roubalheira.


É preciso dar continuidade às reformas em curso no Congresso e às investigações do Ministério Público, da Polícia Federal e do Judiciário. As reformas são essenciais para que a economia prospere. As investigações, para a moralidade pública.

domingo, 2 de abril de 2017

Fernando Henrique Cardoso: Apelo ao bom senso.


Sei que vivemos um momento de desânimo e que o ódio substitui certa bonomia que parecia própria dos brasileiros. É preciso cuidado com cada palavra. Quando eu disse o trivial, que delitos diferentes devem ser apenados de forma diferente, alguns me tomaram como “mais um” que quer acabar com a Operação Lava Jato. Nada disso!

A despeito desse clima, há sinais de vida em nossa economia que mostram que o governo Temer está apontando na direção certa, na área econômica, ao enfrentar temas que são tabus, como as reformas, casas de marimbondo que só podem ser propostas por quem não está visando às próximas eleições. Reconhecer tais avanços não significa desconhecer a enorme quantidade de problemas a enfrentar. Muito menos imaginar que as “condições de governabilidade” serão repostas ao se passar um apagador no quadro que a Lava Jato mostrou. As pessoas só aceitarão a autoridade quando sentirem que a Justiça está atuando e saberá separar o joio do trigo. Pois que existe trigo, existe.

Há terreno para melhorar as coisas ao longo do tempo, permitindo que visões hoje discrepantes convirjam. Uma boa oportunidade para a construção de uma nova agenda é a chamada “reforma política”. Os mais prudentes dirão: não é o melhor momento para mexer em questão tão delicada. Respondo, como dizia a meus colaboradores do Plano Real quando alegavam que a fragilidade do governo da época e o tormento dos parlamentares com a CPI dos “anões do Orçamento” seriam impedimentos para a estabilização monetária: como as forças tradicionais estão desorganizadas, o momento é agora.

Devemos rever as regras eleitorais em pleno auge da Lava Jato. Convém, contudo, qualificar os passos requeridos para aperfeiçoar o sistema político-eleitoral, olhando para o horizonte e tendo as convicções como norte. Política, porém, não é fé: os propósitos não se efetivam ao serem proclamados; precisam convencer, motivar e construir rotas de aproximação entre as diferenças.

Estou convencido de que o parlamentarismo e o voto distrital misto são o melhor caminho para fortalecer as instituições democráticas. Como instalá-los numa conjuntura política em que os partidos se dissolveram e se multiplicaram como siglas que visam mais a obter acesso aos recursos públicos (Fundo Partidário, programa eleitoral, posições vantajosas no Poder Executivo, etc.) do que pregar e construir a “boa sociedade”? Implantar o voto distrital misto e o parlamentarismo neste momento é pouco viável. É preciso reconstituir a confiança nos partidos e para isso eles não deveriam agir como simples máquinas de amealhar votos. Talvez seja conveniente admitir no ínterim candidaturas independentes e discutir a obrigatoriedade do voto.

Enquanto isso, há o que fazer. Alguns propõem o voto em “lista fechada”, pelo qual o eleitor escolhe um partido, e não um candidato, nas eleições para a Câmara dos Deputados. Adotada essa modalidade, cada partido terá o número de cadeiras proporcional ao número de votos obtido por sua legenda. Se um partido tiver direito a dez cadeiras, por exemplo, elas serão ocupadas pelos dez primeiros candidatos da lista partidária. Inconveniente: o eleitor elegeria “em bloco” quem as oligarquias partidárias mais desejassem. A não interferência do eleitor na escolha de nomes pode ser amenizada dando a ele a faculdade de reordenar a lista; esse, entretanto, é procedimento difícil de ser executado e computado.
O propósito da proposta é saudável: fortalecer os partidos, sem os quais não há “democracia representativa”. Além disso, ela torna viável o financiamento público das campanhas eleitorais, porque facilitaria a fiscalização no uso dos recursos, uma vez que as campanhas seriam feitas por alguns partidos, e não por milhares de candidatos.

O enunciado das dificuldades desenha o longo caminho a percorrer. Melhor sermos realistas e começarmos com mudanças menos ambiciosas. Em livro recente de Jairo Nicolau – Representantes de Quem? – há sugestões úteis (algumas em curso no Congresso Nacional) na fase de transição em que nos encontramos. Como há limites de prazo para definir novos procedimentos eleitorais (eles devem ser aprovados até setembro para terem vigência em 2018), creio que o indispensável é aprovar logo a “cláusula de barreira”. Neste caso seriam necessários x por cento de votos, distribuídos por um número mínimo de Estados, para que os partidos pudessem ter representação institucional no Legislativo (menos para o Senado, no qual o voto é no candidato), acesso ao Fundo Partidário e ao tempo de televisão. Também é indispensável aprovar a proibição de coligações nas eleições proporcionais, para evitar que ao votar num deputado de um partido se eleja alguém de outro.

Resta a questão do financiamento. Os partidos precisam de um fundo público, dada a proibição de contribuição das empresas feita pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Entretanto, por que dá-lo a não partidos, como são as siglas sem voto? Deve-se adotar o mesmo critério da cláusula de barreira: o acesso aos fundos públicos deve restringir-se a quem obtenha o quórum nacional mínimo de eleitores. E, sobretudo, podem-se baratear as campanhas, começando pela proibição de “marquetagem” nos programas de TV.

As convicções devem ser mantidas. Essas medidas deveriam vir no bojo de duas outras mais: uma, a aprovação da emenda do senador José Serra que estabelece o voto distrital para as próximas eleições de vereador. Outra, generalizando o voto distrital misto com eleição em 2022 de metade dos deputados por escolha direta dos eleitores e metade a partir de uma “lista fechada”. É o que, aliás, propõe o relator da reforma eleitoral na Câmara dos Deputados.

O momento é já!

*Sociólogo, foi presidente da República

domingo, 5 de março de 2017

Fernando Henrique Cardoso: Jogo de gente grande.

No carnaval passeei com casais amigos por Florença e vizinhanças. Há mais de meio século, eu, minha mulher Ruth, Bento e Lucia Prado e Arthur Giannotti passeáramos pela mesma região com a fascinação da primeira vez e a energia da juventude. Lá, de onde escrevo este artigo, passamos o 31 de dezembro de 1961.
Desta vez, com o mesmo deslumbramento, revi o que pude das cidades toscanas. Em 1961 vivíamos o clima da Guerra Fria — russos e americanos se enfrentavam por procuração, como na “crise dos mísseis” em Cuba — e as marcas da guerra quente estavam presentes na Europa bombardeada. Agora, nem mesmo a eventual tensão belicosa que os dias de Trump deixam entrever assusta o Ocidente.
A memória se esfuma: passa-se por um ou outro cemitério americano em solo italiano e só os mais velhos, imagino, ainda se lembram do que foi a luta dos Aliados contra o Eixo totalitário. Em poucos brasileiros ressoam os nomes de Monte Cassino e Monte Castello, marcos do heroísmo dos soldados brasileiros.
É bom, entretanto, não esquecer. Desfrutando o gênio de Masaccio ou o colorido e a perspectiva dos afrescos de Ghirlandaio, a poucos passos um do outro na Santa Maria Novella, é bom darmo-nos conta de que o que o passado construiu pode romper-se e não só na arte.
Vale a pena recordar que a História é mãe e madrasta ao mesmo tempo.
Os sinais do futuro podem não ser do nosso agrado, mas com eles teremos de nos haver.
O pós-guerra, a despeito das diferenças entre comunistas e capitalistas, resultou na criação das Nações Unidas e na corresponsabilização dos vencedores da guerra pela ordem global e pela paz mundial.
O arcabouço político que precedeu a globalização econômica está se modificando, e a continuidade do que pareceria imutável no espírito ocidental depois de tanta violência e morte, o internacionalismo, não pode mais ser tomado como algo definitivo.
Será que os eleitores do Brexit ou os rebelados do Rust Belt, que atribuem suas perdas à globalização e aos imigrantes, acaso se deram conta de que estão destruindo o que as gerações passadas fizeram com tanto esforço? Provavelmente não e pouco importa.
O que é certo é que o “equilíbrio de poder” que americanos, chineses, russos e europeus construíram depois da guerra de 1939-45 está abalado. E não pela “desglobalização” ou pelas crises da economia — que sempre pesam — mas pela visão do mundo e do poder que os governantes da geração atual parecem acalentar.
Os Estados Unidos com Trump se retraem dos compromissos internacionais: o “America first” de Trump visa mais o fortalecimento da economia doméstica do que o predomínio mundial.
Os chineses se expandem na economia e se fortalecem regionalmente, mas sem empenho em construir o mundo à sua semelhança, como tinham os americanos.
A Rússia se contenta em intervir de onde era excluída, de “sua” área imperial e das zonas onde historicamente os otomanos deram as cartas.
E por aí vão refazendo caminhos os antigos donos do mundo, deixando a Europa escabreada.
Diante disso, o que cabe aos que ainda não têm voz decisiva no capítulo global, como nós brasileiros, é dar-nos conta de nossos interesses e ver estrategicamente, sem alinhamentos automáticos nem mesmo ideológicos (pois disso não se trata como na luta contra o Totalitarismo ou o Comunismo), para que lado vai o mundo e como melhor nos situamos nele.
Este “pragmatismo responsável” não deve se eximir de tomar partido, entretanto, na defesa dos direitos humanos e da democracia quando for o caso.
Não deve tão pouco deixar de avaliar friamente os interesses econômicos de nosso povo. Se até Larry Summers, ex-ministro da Fazenda dos Estados Unidos e pilar do pensamento liberal de mercado, para compensar as angústias da globalização, apresentou um texto ao Berggruen Institute falando de “nacionalismo responsável”, por que não deveríamos repensar nossas chances, interesses e responsabilidades quando uma nova ordem mundial começa a esboçar-se?
O Itamaraty, sob a batuta de José Serra, reviu posições e revigorou alguns de nossos antigos propósitos. Dentre estes, o fortalecimento da cláusula democrática no Mercosul e a consequente cobrança de novos rumos na Venezuela.
Precisamos intensificar os liames com os vizinhos da América do Sul no lado do Pacífico e, principalmente, dar maior força a nossa ligação com a Argentina. Da mesma forma, necessitamos de sólida reaproximação com o México, flechado por Trump; devemos ampliar nossas convergências, não só econômicas mas políticas, com aquele país.
O muro proposto separa não apenas o México: separa os latino-americanos e os americanos adversos à insensatez de Trump.
Começamos a vislumbrar que as mudanças no tabuleiro internacional não vão na direção de um novo Hegemon, mas abrem espaço para alianças regionais que podem transcender o hemisfério. Neste, por escolha dos Estados Unidos, estão distantes os tempos da Alca.
Quem sabe um acordo com o Mercosul se torne viável, com os alemães à frente e os ingleses correndo à parte, mas também interessados em, ao se distanciarem de Bruxelas, não perderem espaços no mundo.
China e Índia, que crescem 7% ao ano, precisarão cada vez mais de comida e minérios de que dispomos.
O rearranjo atual da ordem global não tem força para estancar o que as mudanças culturais e tecnológicas tornaram irreversível: as consequências do aumento da produtividade e a integração produtiva.  As mudanças em curso decorrem mais das questões de poder do que das econômicas. Isso não nos leva a descuidar de nossa base produtiva, mas induz-nos a não descuidar dos meios disponíveis de poder, que incluem capacidade de defesa e visão estratégica.
É o que esperamos do governo ao nomear um novo ministro para as Relações Exteriores: que não se esqueça de que entraremos em um jogo “de gente grande”.

domingo, 5 de fevereiro de 2017

FHC: Ainda há razões para sonhar.

Com dificuldades e tropeços o País está encaminhando seus problemas. Quem imaginaria há um ano que cogitaríamos de a inflação atingir em 2017 o centro da meta, isto é, 4,5% ao ano, ou menos ainda? E que veríamos o déficit fiscal de 2016 ficar abaixo do projetado e a reforma da Previdência ser discutida a sério, com chances de ser aprovada, para mantê-la funcionando sem o descontrole das contas públicas? E ainda a racionalidade voltar à condução da Petrobrás e às políticas para o setor de petróleo, a começar pelo fim da obrigatoriedade de a empresa investir em poços do pré-sal que eventualmente não lhe interessem? Ou pôr em pauta a mudança de regras trabalhistas, atendendo a anseios até do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, que há muito tempo sabe que em certas circunstâncias é melhor negociar e salvar o emprego do que se ater à lei, encalacrar a empresa e perder postos de trabalho?

Os governos petistas jogaram uma nuvem de ilusões no País por uma década e tacharam muito do que era sensato como “neoliberalismo”, uma doença que atacaria os interesses do povo e dos trabalhadores. A evidência dos desastres causados por essas ilusões provocou uma reviravolta. Será que aprendemos? Não sei. Relendo as conclusões de Barbara Tuchman, no livro A Marcha da Insensatez, que se intitulam “lanterna na proa”, vê-se que o olhar que ilumina as ondas do passado nem sempre evita que a insensatez retorne. Devemos torcer para as experiências positivas que mostram que o controle da inflação e das contas do Tesouro é pré-requisito para que as políticas públicas, especialmente as que beneficiam os mais pobres, possam perdurar.

Talvez tenhamos aprendido também que manter as contas do governo em ordem não é ser “de direita” ou “de esquerda”, é ser sensato. Manter o controle financeiro e ter a dívida pública ajustada é condição de governabilidade e permite olhar para o futuro. Devem-se evitar gastos (principalmente os permanentes, como os com pessoal) que não tenham receitas presentes ou futuramente certas para cobri-los. Adotar políticas que favoreçam mais o capital do que o trabalho, ou vice-versa, depende, aí sim, da orientação política do governo. Sempre considerando que vivemos num sistema que se chama “capitalista”, gostemos dele ou não, e que não há alternativas no horizonte... E sem expansão dos investimentos (públicos e privados) tampouco haverá políticas sociais que se mantenham. Tão simples, penoso e difícil quanto isso.

Voltando ao presente. A Lava Jato pode vir a estimular uma revolução em nossas práticas. Tomara seja o início de uma mudança cultural. Apontam nessa direção as decisões tomadas pelo Supremo para dar continuidade às investigações, assim como o fracasso das tentativas no Congresso para aprovar anistias por delitos cometidos. Ficou claro que a partir de certo momento o conluio entre governo e empresários tornou sistêmica a corrupção, beneficiando os partidos no governo.

O passo inicial para a correção dos rumos nessa matéria está dado, assim como tiveram início as correções de rumo econômico. A questão agora é saber como o Brasil se tornará um país mais decente e mais igualitário no futuro. As dificuldades são muitas, mas há possibilidades. 

A alavanca inicial da retomada do crescimento está no corte da taxa de juros, que já começou. A competitividade conquistada na agricultura, na mineração e no processamento industrial de materiais extraídos desses setores são ativos da economia brasileira. A melhoria dos preços das commodities no mercado internacional dá impulso a esses setores. Com novas regras do jogo no setor de petróleo, mais cedo que tarde virão vultosos investimentos, cuja sustentação pode vir da infraestrutura. Nessa área, as regras para a cooperação público-privada estão se aperfeiçoando. Um país de mais de 200 milhões de habitantes não pode descuidar do mercado interno, que está umbilicalmente ligado a outro tema de que teremos de nos ocupar: precisamos de mais renda, melhor distribuição e mais igualdade social. Isso abrirá espaço para a retomada industrial, a qual, além do mercado interno, precisará de articulação com o mercado global para aumentar as exportações de manufaturas e receber os fluxos de inovação que aumentam a produtividade. 

Tudo isso, obviamente, requer melhor educação para dar ensejo a melhores empregos, questão central para a população. Houve avanço na recente reforma do ensino médio, ainda insuficiente. As tecnologias de comunicação e robotização aumentam exponencialmente a produtividade, mas concentram o capital e diminuem a oferta de empregos. Estes requerem cada vez maior nível educacional dos trabalhadores. E tudo requer bons governos, os quais dependem de sorte, mas também de reformas na legislação partidária e eleitoral, algumas já avançadas pelo Senado. 

E não nos esqueçamos de que é preciso voltar a estimular o espírito empresarial, público e privado. Nesse sentido, as consequências não desejadas da Lava Jato devem ser medidas, sem destruir as empresas. Assim como a Petrobrás se está reconstituindo, não devemos deixar que o know-how da engenharia nacional se perca com o desmantelamento das empresas de construção pesada, desde que elas se recuperem moralmente, com novas regras de governança e eventuais fusões, sempre que haja as punições individuais cabíveis. A venda de empresas a estrangeiros na bacia das almas não é o caminho mais saudável para o futuro. Sem o chauvinismo irresponsável que extremou os requisitos de produção local, buscando equilíbrio entre os produtores nacionais e os estrangeiros.

O que não podemos é cruzar os braços e desanimar. Ainda há muito espaço para sonhar com um futuro melhor para os que vivem no Brasil. Há campo para a esperança.

domingo, 11 de dezembro de 2016

FHC e a dor na alma.

De Eliane Cantanhêde na sua coluna  de hoje no ESTADÃO:
FHC. Sempre tão frio e racional, Fernando Henrique Cardoso anda abatido com o tamanho e as diferentes formas da crise. Mesmo depois de passar a fase pior da hérnia de disco e abandonar a bengala, está com cara péssima.
O senhor continua com muita dor na coluna?”, perguntou uma assessora.
Não. É dor na alma”, respondeu.

sexta-feira, 27 de maio de 2016

Dr. Dr. h.c. Fernando Henrique Cardoso: Harvard University.



His Excellency Fernando Henrique Cardoso

Doctor of Laws

Fernando Henrique Cardoso served as president of the Federative Republic of Brazil from 1995 to 2003. He is a sociologist and the author of several books on social change and development in Brazil and Latin America.
Cardoso holds a degree in sociology from the University of Sao Paulo, where he later taught from 1952 to 1964. After the country’s 1964 coup d’etat, he was persecuted for his efforts to improve public education and modernize the university. He continued his academic career in exile, living in Chile and France before returning to Brazil in 1968. Before becoming president, he held several other positions in the Brazilian government, serving as a state senator, minister of foreign affairs, and minister of finance.
Cardoso has taught at universities in Chile, England, France, and the U.S., and he founded the Centro Brasileiro de Analise e Planejamento, which became an important center for research on Brazilian politics and culture. He is past president of the International Sociological Association and holds honorary degrees from more than 20 universities.

domingo, 1 de maio de 2016

FHC: As responsabilidades políticas.

O pano de fundo da situação política atual é a tremenda crise econômico-financeira em que os governos do PT jogaram o País. Em resumo retórico e exagerado: o Tesouro quebrou. Há um endividamento acelerado pelo alto custo da dívida pública federal (mais de 14% de juros por ano, sobre uma dívida de mais ou menos R$ 3 trilhões) e pela expansão dos gastos correntes em todos os níveis. Esse fato levou os Estados a pleitear a renegociação de suas dívidas com a União em termos perigosos para o conjunto das finanças públicas do País. Além disso, só a Petrobrás deve mais de R$ 500 bilhões e precisará ser capitalizada. Fora as dívidas não reconhecidas, os “esqueletos”, da Caixa Econômica, do setor elétrico, etc. Frutos da péssima gestão e de irresponsabilidade fiscal.
É com esse pano de fundo que o Congresso está votando o impeachment da presidente. É constitucional derrubar uma presidente porque é má administradora e perdeu a popularidade? Não. Mas não é disso que se trata. Trata-se de que houve, sim ,“crime” de responsabilidade, seguido de um brutal enfraquecimento político do governo. No que consiste o crime de responsabilidade? Em a presidente ter utilizado os bancos públicos para mascarar a verdadeira situação fiscal da República e ter autorizado gastos sem aprovação pelo Congresso. Pôs em risco a credibilidade do governo perante o “mercado”e, pior, perante o povo, que está pagando as bravatas financeiras com o desemprego, a inflação e a falta de crédito.
O ministro do Supremo que presidiu o julgamento no Senado do ex-presidente Collor, o jurista Sydney Sanches, deu uma explicação cristalina sobre em que consistiu o “crime” de responsabilidade naquele caso. A alegação fundamental era de que o presidente recebera um automóvel de presente. O Senado considerou que houve “quebra de decoro”. O ministro Sanches concordou com a interpretação e disse mais: desrespeitar a Lei de Responsabilidade Fiscal e fazer gastos sem autorização do Congresso são formas de quebra de decoro. Entretanto, Collor foi absolvido pelo Supremo, na acusação de crime comum (corrupção), com o voto do próprio Sanches. Por quê? Porque não ficou provado que da quebra de decoro tivesse decorrido qualquer benefício para quem o presenteara com o carro.
Logo, o “crime” de responsabilidade não é um crime capitulado no Código Penal, mas na Constituição, com duplo aspecto: jurídico-administrativo e político. Do impeachment nada mais decorre senão a substituição de quem está no poder e a perda dos direitos políticos por oito anos. Não se trata de condenar alguém criminalmente, mas de afastar um dirigente político que desrespeitou a Constituição e perdeu sustentação política.
Alguns alegam que o impeachment atual é irregular porque as “pedaladas” fiscais se deram sobretudo no primeiro mandato de Dilma e também teriam sido praticadas por outros presidentes. No caso destes, houve apenas breves atrasos no repasse de pequena monta de recursos do Tesouro aos bancos. No caso do atual governo, os atrasos se acumularam ao longo de mais de um ano, alcançando quase R$ 60 bilhões. Quanto à questão dos atos em causa se referirem ao mandato anterior, tanto a Constituição como a lei de 1950 que regula o impeachment não poderiam fazer a distinção entre o primeiro e o segundo mandato porque inexistia a possibilidade de reeleição.
De um possível e mesmo provável afastamento da presidente decorre, pela Constituição, sua substituição pelo vice-presidente. Trata-se de uma determinação constitucional, não de uma escolha. Quanto à nulidade da eleição de 2014, sob o fundamento de que houve abuso do poder econômico ou mesmo corrupção, é matéria afeta ao Tribunal Superior Eleitoral. Dificilmente isso ocorrerá este ano; se for no próximo, o Congresso escolherá o novo presidente, com menor participação do eleitorado do que a simples assunção do vice, que teve o mesmo número de votos que a presidente. Fazer uma emenda constitucional para reduzir o mandato atual é procedimento que implica reduzir mandatos, tema altamente discutível do ponto de vista constitucional, por mais que possa ser melhor chamar eleições diretas e colocar no poder quem não esteve direta ou indiretamente envolvido com os “malfeitos” do governo atual. Demandará, de toda maneira, meses de discussão.
Havendo impeachment, espera-se que o vice-presidente assuma a responsabilidade histórica que lhe cabe: juntar o País ao redor de um programa de “emergência nacional” que dê possibilidades reais para a economia voltar a crescer. O novo Ministério precisa ter crédito perante a opinião pública, e não somente no Congresso. Cabe ao presidente escolher sua equipe, assim como cabe aos partidos, especialmente ao PSDB, que não participou da antiga base governamental, apresentar a agenda indispensável para o momento e, se for o caso, referendar a escolha de ministros que pertençam a seus quadros. É natural que cada partido avalie as consequências de suas decisões sobre a sucessão de 2018. Mas o essencial é que os partidos que vierem a apoiar o governo se preocupem com a viabilidade e a urgência das soluções que o País exige para sair da crise.
Para ingressar num governo que não é seu o PSDB deve fazê-lo com base em compromissos claros, a serem assumidos pelo novo presidente: não interferir na Lava Jato, dar passos inequívocos na reforma político-administrativa, recriar as condições do crescimento da renda e do emprego e não apenas manter, mas melhorar, as políticas sociais. Se os compromissos forem descumpridos, o PSDB deve deixar o governo da mesma maneira como eventualmente ingressar, explicando as razões de sua decisão. O governo pós-impeachment não é do PSDB e não deverá ser monopólio de nenhum partido, mas uma emergência nacional. Caso contrário haverá riscos de naufrágio. É hora de cada partido e cada líder assumir suas responsabilidades perante a Nação.
Fernando Henrique Cardoso - 01/05/2016.

domingo, 1 de novembro de 2015

FHC: Por uma agenda nacional.

Nestes últimos tempos tenho procurado me inspirar na recomendação bíblica: olhai os lírios do campo. Diante de tanto escândalo, tanta ladeira abaixo da economia, é melhor olhar para o mais simples e mais sublime. Tive a oportunidade de ouvir Beethoven na Filarmônica de Berlim, regida por Simon Rattle. A “Nona” foi soberba, mas a “Sétima sinfonia” envolveu o auditório em tamanha beleza que me reconciliei com as agruras que me esperariam na volta. Mal chegado, ainda quentes os debates que havia feito para o lançamento de meu livro “A miséria da política”, entrei no ciclo das entrevistas e apresentações na TV sobre outro livro, este mais de recordações, desabafos momentâneos e sensações ambivalentes, “Diários da Presidência – 1995-1996”. Tornou-se inevitável que a pequena e a grande política se misturassem. Eis-me, pois, de novo no labirinto do noticiário cotidiano. Daí a refletir sobre o modo de como sair do ramerrão da política partidária, vai um passo. De que vale eu dizer novamente que impeachment não é alvo desejável, mas, sendo o caso, torna-se circunstância impositiva diante de fatos e de reações populares? Certamente não se trata de golpe, mas de processo prescrito pela Constituição. Para que serve eu dizer que uma vez que o Tribunal Superior Eleitoral abriu uma investigação sobre os abusos do poder econômico para assegurar a reeleição presidencial só resta aguardar as investigações e a palavra dos juízes? Ou que há momentos em que o interesse da pátria pode exigir que a grandeza dos governantes acolha até o gesto dramático da renúncia, desde que com ele venham embutidas exigências para que os principais nós que emperram o país sejam cortados?
A saída da crise requer a formação de uma nova conjuntura na qual seja possível colocar na ordem do dia os cinco ou seis pontos fundamentais ao redor dos quais se forme um novo consenso nacional. Não se trata de aliança entre partidos, grupelhos e setores da sociedade. Trata-se de dar novo rumo ao país na busca de melhor sociedade futura. Não precisamos de salvacionismos, mas da elaboração de ideias que se possam substantivar em políticas que atendam ao interesse nacional e aos anseios populares. Não é possível que não tenhamos aprendido como nação que a demanda contínua de mais políticas públicas benéficas para certos setores e a recusa, ou impossibilidade, de maior tributação são incompatíveis. Num só exemplo: ou se volta a discutir a idade mínima de aposentadoria ou as contas da Previdência, que já não fecham, apresentarão déficits crescentes e insustentáveis. Ou, em outro terreno: já não se viu que a mágica de botequim de aumentar o endividamento público (já chegamos a R$ 2,7 trilhões!) e de continuar expandindo o crédito para incentivar o consumo pode apenas criar “bolhas”? Estas, uma vez estouradas, pela falta de meios tanto para emprestar quanto para pagar, levam a economia e as pessoas à ruína, como agora acontece. Já não passou da hora de aprovar, como foi sugerido no passado, medida que limite a expansão do gasto abaixo do crescimento do PIB, salvo em situações de retração econômica? Ou de aprovar, como proposto em projeto em curso, limites para o endividamento federal? Ou ainda se acredita que manter o Orçamento em relativo equilíbrio, com uma dívida pública não explosiva, é um imperativo apenas da ortodoxia “neoliberal”?
Mudando de tema, por que não voltarmos à proposta, hoje apoiada pelo Sindicado dos Metalúrgicos de São Bernardo e pela prática corriqueira em muitos setores produtivos, que aceita as negociações entre sindicatos, mesmo a despeito do legislado, sem que se alterem os itens constitucionais da CLT? O fantasma do desemprego está alertando para a necessidade de maior realismo no mercado de trabalho. Assim como a dura experiência de a crise nos ter levado às portas da “dominância fiscal” mostra que o crescimento da taxa de juros Selic, sem um efetivo ajuste fiscal, não funciona para conter a inflação e apenas aumenta o montante de juros da dívida pública quando se passa de certo umbral de razoabilidade pelos impulsos do voluntarismo político.
Mais ainda, e apenas a título ilustrativo de mais um entre os muitos itens da agenda necessária para tirar o país do atoleiro, é preciso reconhecer que não houve percepção de que o mundo marcha para uma economia de baixo carbono, e que o Brasil entrou numa sucessão de erros na política energética. Assentou mal as bases de exploração do pré-sal, restringindo nossa enorme vantagem comparativa com o etanol, e errou pela falta de uma política de tarifas adequadas, a ser conduzida por agências reguladoras livres da influência partidária. As relações intrínsecas entre desenvolvimento econômico e meio ambiente devem ser outro tema da nova agenda nacional. Por fim, o ponto focal é a recuperação da credibilidade das instituições políticas. Cinco ou seis itens básicos podem ser definidos para desatar o impasse da legislação eleitoral e partidária. Esta, somada à permissividade com práticas corruptas, levou à proliferação de falsos partidos e, consequentemente, de ministérios para atender à sanha de alguns deles para abocanhar pedaços do Estado e do Orçamento. Daí a crise moral em que estamos mergulhados.

É para conduzir uma agenda nacional deste tipo, ou do que mais pareça necessário ao país, que precisamos de lideranças e do apoio da sociedade e de alguns partidos. Não sairemos da paralisia nem da sensação de estarmos à beira do despenhadeiro se a discussão continuar limitada a pessoas e a interesses imediatistas delas ou de seus partidos. Como quem tem a responsabilidade de unir porque foi eleita para conduzir o país (e não uma facção) está com poucas condições para tal, é que se dá a discussão, infausta, mas necessária, dos caminhos constitucionais para sairmos da crise. Não se dá um passo maior sem saber o que vem depois. Daí a necessidade de um consenso nacional para juntarmos forças ao redor de um caminho mais claro para o futuro. 
Fernando Henrique Cardoso.

A importância de debater o PIB nas eleições 2022.

Desde o início deste 2022 percebemos um ano complicado tanto na área econômica como na política. Temos um ano com eleições para presidente, ...