Nestes últimos tempos tenho procurado me inspirar na recomendação
bíblica: olhai os lírios do campo. Diante de tanto escândalo, tanta ladeira
abaixo da economia, é melhor olhar para o mais simples e mais sublime. Tive a
oportunidade de ouvir Beethoven na Filarmônica de Berlim, regida por Simon
Rattle. A “Nona” foi soberba, mas a “Sétima sinfonia” envolveu o auditório em
tamanha beleza que me reconciliei com as agruras que me esperariam na volta.
Mal chegado, ainda quentes os debates que havia feito para o lançamento de meu
livro “A miséria da política”, entrei no ciclo das entrevistas e apresentações
na TV sobre outro livro, este mais de recordações, desabafos momentâneos e
sensações ambivalentes, “Diários da Presidência – 1995-1996”. Tornou-se
inevitável que a pequena e a grande política se misturassem. Eis-me, pois, de
novo no labirinto do noticiário cotidiano. Daí a refletir sobre o modo de como
sair do ramerrão da política partidária, vai um passo. De que vale eu dizer
novamente que impeachment não é alvo desejável, mas, sendo o caso, torna-se
circunstância impositiva diante de fatos e de reações populares? Certamente não
se trata de golpe, mas de processo prescrito pela Constituição. Para que serve
eu dizer que uma vez que o Tribunal Superior Eleitoral abriu uma investigação
sobre os abusos do poder econômico para assegurar a reeleição presidencial só
resta aguardar as investigações e a palavra dos juízes? Ou que há momentos em
que o interesse da pátria pode exigir que a grandeza dos governantes acolha até
o gesto dramático da renúncia, desde que com ele venham embutidas exigências
para que os principais nós que emperram o país sejam cortados?
A saída da crise requer a formação de uma nova conjuntura na qual
seja possível colocar na ordem do dia os cinco ou seis pontos fundamentais ao
redor dos quais se forme um novo consenso nacional. Não se trata de aliança
entre partidos, grupelhos e setores da sociedade. Trata-se de dar novo rumo ao
país na busca de melhor sociedade futura. Não precisamos de salvacionismos, mas
da elaboração de ideias que se possam substantivar em políticas que atendam ao
interesse nacional e aos anseios populares. Não é possível que não tenhamos
aprendido como nação que a demanda contínua de mais políticas públicas
benéficas para certos setores e a recusa, ou impossibilidade, de maior
tributação são incompatíveis. Num só exemplo: ou se volta a discutir a idade
mínima de aposentadoria ou as contas da Previdência, que já não fecham,
apresentarão déficits crescentes e insustentáveis. Ou, em outro terreno: já não
se viu que a mágica de botequim de aumentar o endividamento público (já
chegamos a R$ 2,7 trilhões!) e de continuar expandindo o crédito para
incentivar o consumo pode apenas criar “bolhas”? Estas, uma vez estouradas,
pela falta de meios tanto para emprestar quanto para pagar, levam a economia e
as pessoas à ruína, como agora acontece. Já não passou da hora de aprovar, como
foi sugerido no passado, medida que limite a expansão do gasto abaixo do
crescimento do PIB, salvo em situações de retração econômica? Ou de aprovar,
como proposto em projeto em curso, limites para o endividamento federal? Ou
ainda se acredita que manter o Orçamento em relativo equilíbrio, com uma dívida
pública não explosiva, é um imperativo apenas da ortodoxia “neoliberal”?
Mudando de tema, por que não voltarmos à proposta, hoje apoiada
pelo Sindicado dos Metalúrgicos de São Bernardo e pela prática corriqueira em
muitos setores produtivos, que aceita as negociações entre sindicatos, mesmo a
despeito do legislado, sem que se alterem os itens constitucionais da CLT? O
fantasma do desemprego está alertando para a necessidade de maior realismo no
mercado de trabalho. Assim como a dura experiência de a crise nos ter levado às
portas da “dominância fiscal” mostra que o crescimento da taxa de juros Selic,
sem um efetivo ajuste fiscal, não funciona para conter a inflação e apenas
aumenta o montante de juros da dívida pública quando se passa de certo umbral
de razoabilidade pelos impulsos do voluntarismo político.
Mais ainda, e apenas a título ilustrativo de mais um entre os
muitos itens da agenda necessária para tirar o país do atoleiro, é preciso
reconhecer que não houve percepção de que o mundo marcha para uma economia de
baixo carbono, e que o Brasil entrou numa sucessão de erros na política
energética. Assentou mal as bases de exploração do pré-sal, restringindo nossa
enorme vantagem comparativa com o etanol, e errou pela falta de uma política de
tarifas adequadas, a ser conduzida por agências reguladoras livres da
influência partidária. As relações intrínsecas entre desenvolvimento econômico
e meio ambiente devem ser outro tema da nova agenda nacional. Por fim, o ponto
focal é a recuperação da credibilidade das instituições políticas. Cinco ou seis
itens básicos podem ser definidos para desatar o impasse da legislação
eleitoral e partidária. Esta, somada à permissividade com práticas corruptas,
levou à proliferação de falsos partidos e, consequentemente, de ministérios
para atender à sanha de alguns deles para abocanhar pedaços do Estado e do
Orçamento. Daí a crise moral em que estamos mergulhados.
É para conduzir uma agenda nacional deste tipo, ou do que mais
pareça necessário ao país, que precisamos de lideranças e do apoio da sociedade
e de alguns partidos. Não sairemos da paralisia nem da sensação de estarmos à
beira do despenhadeiro se a discussão continuar limitada a pessoas e a
interesses imediatistas delas ou de seus partidos. Como quem tem a
responsabilidade de unir porque foi eleita para conduzir o país (e não uma
facção) está com poucas condições para tal, é que se dá a discussão, infausta,
mas necessária, dos caminhos constitucionais para sairmos da crise. Não se dá
um passo maior sem saber o que vem depois. Daí a necessidade de um consenso
nacional para juntarmos forças ao redor de um caminho mais claro para o futuro.
Fernando Henrique Cardoso.
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