Para reflexão, Fernando Henrique Cardoso, hoje no "O Estado de S.Paulo".
Nas últimas semanas tenho dado entrevistas aos jornais e às TVs, talvez
mais do que devesse ou a prudência indicasse. Por quê? A mídia anda à busca de
quem diga o que pensa sobre o "caos" (a qualificação é oficiosa, vem
da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República) em que
estaríamos mergulhados e é necessário que vozes da oposição sejam ouvidas.
A crise atual marca o fim de um período, embora ainda não haja percepção
clara sobre o que virá. Em crises anteriores as forças opostas ao governo
estavam organizadas, tinham objetivos definidos. Foi assim com a queda de
Getúlio em 1945, quando a vitória dos Aliados impunha a democracia; idem na
segunda queda de Getúlio, quando seus opositores temiam a instauração da "República
sindicalista"; o parlamentarismo, igualmente, serviu de esparadrapo para
que Jango pudesse tomar posse; em 1964 as "marchas das famílias pela
liberdade" aglutinaram as forças políticas aos militares contra o
populismo presidencial e, posteriormente, entregaram-se a práticas
autoritárias; deu-se o mesmo, por fim, quando a frente de oposição, liderada
pelo PMDB, em aliança com dissidentes da antiga Arena, pôs fim ao regime criado
em 1964.
Em todos esses casos, previamente ao desenlace houve o enfraquecimento da
capacidade de governar e os opositores tinham uma visão política alternativa
com implicações econômicas e sociais, embora se tratasse fundamentalmente de
crises políticas. Mesmo no impeachment de Collor, a crise era política e a
solução, idem. Naturalmente, ajustes econômicos foram feitos em seguimento às
soluções políticas, basta lembrar a dupla Campos-Bulhões nos anos 1960. Ou,
ainda, os Planos Cruzado e Real, que se seguiram à Constituinte e à derrocada
de Collor.
No que se distingue o "caos" atual? Em que ele é mais
diretamente a expressão do esgotamento de um modelo de crescimento da economia
(como também em 1964 e nas Diretas-Já), embora ainda não se veja de onde virá o
novo impulso econômico. Mais do que uma crise passageira, o "caos"
atual revela um esgotamento econômico e a exaustão das formas
político-institucionais vigentes. Será necessário, portanto, agir e ter
propostas em vários níveis. Embora haja alguma similitude com a situação
enfrentada na crise de Jango Goulart, nem por isso a "saída" desejada
é golpista e muito menos militar. Não há pressões institucionais para derrubar
o governo e todos queremos manter a democracia.
Explico-me: a pretensão hegemônica do lulopetismo assentou-se até a crise
mundial de 2008 na coincidência entre a enorme expansão do comércio mundial e a
alta do preço das commodities, com a continuidade das boas práticas econômicas
e sociais dos governos Itamar Franco-Fernando Henrique Cardoso. Essas práticas
foram expandidas no primeiro mandato de Lula, ao que se somou a reação positiva
à crise financeira mundial. Ao longo do seu segundo mandato, o lulopetismo
assumiu ares hegemônicos e obteve, ao mesmo tempo, a aceitação do povo (emprego
elevado, Bolsa Família, salário mínimo real aumentado) e o consentimento das
camadas econômicas dominantes (bolsa BNDES para os empresários, Tesouro em
comunicação indireta com o financiamento das empresas, Caixa Econômica ajudando
quem precisasse).
Só que o boom externo acabou, os cofres do governo secaram e a galinha de
ovos de ouro da "nova matriz econômica" - crédito amplo e barato e
consumo elevado - perdeu condições de sustentabilidade. Isso no exato momento
em que o governo Dilma pôs o pé no acelerador, em vez de navegar com prudência.
Daí que o discurso de campanha tenha sido um e a prática atual de governo,
outra. Some-se a isso a crise moral, na qual o petrolão não é caso único.
As oposições devem começar a desenhar outro percurso na economia e na
política. Como a crise, além de econômica e social, é de confiabilidade (o
governo perdeu popularidade e credibilidade), começam a surgir vozes por
"um diálogo" entre oposições e governo. Problema: qual o limite entre
diálogo político e "conchavo", ou seja, a busca de uma tábua de
salvação para o governo e para os que são acusados de corrupção? A reconstrução
de uma vida democrática saudável e uma saída econômica viável requerem
"passar a limpo" o País: que prossigam as investigações e que a
Justiça se cumpra. Ao mesmo tempo há que construir novos modos de funcionamento
das instituições políticas e das práticas econômicas.
As oposições devem iniciar no Congresso o diálogo sobre a reforma
política. Em artigo luminoso do senador José Serra, publicado no Estadão de 26
passado, estão alinhadas medidas positivas tanto para a reforma eleitoral como
para práticas de governo. Iniciar a proposta de voto distrital misto nas
eleições para vereador em municípios com mais de 200 mil eleitores é algo
inovador (o senador Aloysio Nunes fez proposta semelhante). Há sugestões de
igual mérito na área administrativa, como a criação da Nota Fiscal Brasileira,
e ainda a corajosa e correta crítica ao regime de partilha que levou a
Petrobrás a se superendividar. De igual modo o senador Tasso Jereissati
apresentou emenda moralizadora sobre o financiamento das eleições, impondo
tetos de doação de até R$ 800 mil para os conglomerados empresariais e
restrições de acesso ao financiamento público para as empresas doadoras.
Partidos que até agora apoiam o governo, como o PMDB, também têm propostas a
ser consideradas.
Sei que não basta reformar os partidos e o Código Eleitoral. Mas é um bom
começo para a oposição, que, além de ir às ruas para apoiar os movimentos
populares moralizadores e reformistas, deve assumir sua parte de
responsabilidade na condução do País para dias melhores. Deste governo há pouco
a esperar, mesmo quando, movido pelas circunstâncias, tenta corrigir os rumos.
Tanto quanto popularidade, falta-lhe credibilidade.
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