ALEXANDRE SCHWARTSMAN, economista-chefe do Grupo Santander Brasil, doutor em economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley) e ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central, escreveu na FOLHA DE S. PAULO sobre o “Kiwi tuu”.
QE2 (PRONUNCIA-SE "kiwi tuu"), como ficou conhecido, é a nova tentativa do Federal Reserve (Fed, o banco central norte-americano) de impulsionar a economia dos EUA após sinais de perda de fôlego da recuperação.
Concretamente, consiste na compra de mais US$ 600 bilhões em títulos do Tesouro americano, de preferência com prazo entre cinco e seis anos, de modo a reduzir as taxas de juros dos títulos daquela maturidade.
Em condições normais não é exatamente assim que se opera a política monetária. Na prática, bancos centrais preferem agir diretamente sobre a taxa de juros -quase sempre a taxa overnight (aplicável a empréstimos de um dia)-, comprometendo-se a emprestar e a tomar emprestados recursos à taxa-meta determinada pelos seus comitês de política monetária, isto é, pela compra (ou venda) ilimitada de títulos à taxa-meta.
O Fed já reduziu a taxa de juros overnight para praticamente zero e é impossível reduzi-la ainda mais.
De fato, se um título fosse remunerado a taxas nominais negativas, seus detentores sempre poderiam trocá-los por notas de dinheiro, cujo retorno (zero) seria superior.
A ocorrência de juro zero, ainda que rara, não é inédita: aconteceu durante a Grande Depressão e, mais recentemente, tornou-se característica da longa crise japonesa. Passou a ser, desde então, objeto de estudos por parte de economistas monetários, entre eles o atual presidente do Fed, Ben Bernanke.
Em 2002, já no Fed, embora não como seu presidente, Bernanke, numa palestra famosa, sugeriu os passos que deveriam ser seguidos para contornar o problema caso viesse (como afinal veio) a se manifestar.
Dizia então que o Fed poderia estender para maturidades mais longas os mesmos procedimentos que usa para fixar a taxa de juros de um dia, isto é, se comprometer a comprar ilimitadamente títulos de, digamos, cinco anos, para fixar seu rendimento.
A bem da verdade, o Fed não foi tão longe na decisão da semana passada, anunciando, em princípio, que sua intervenção está limitada a US$ 600 bilhões até junho de 2011 (que, somados ao reinvestimento dos títulos a vencer, representam compras de aproximadamente US$ 900 bilhões).
Ainda assim, mesmo antes do anúncio da decisão, as taxas de juros dos papéis mais longos se reduziram nos últimos dois meses: houve uma queda próxima a 0,50% ao ano no caso dos títulos de cinco anos. Em outras circunstâncias isso representaria um impulso considerável à demanda interna.
No entanto, não vivemos em condições normais (fosse o caso, não estaríamos discutindo o QE2) e restam dúvidas sérias acerca da disposição de consumidores e de empresas americanos em elevar seus gastos, mesmo com taxas de juros mais baixas, isso para não mencionar a pouca disposição dos bancos (ainda fragilizados) no sentido de aumentar a disponibilidade de crédito.
Em outras palavras, há chances consideráveis de que essa estratégia não funcione, isto é, de que a trajetória da economia com o QE2 seja muito similar à que ocorreria na ausência do QE2.
Isso dito, deve ser claro que, nas atuais circunstâncias, trata-se de um risco que o Fed tem de correr.
Com efeito, o risco maior é o de pecar por omissão e permitir que a fraqueza hoje existente se transforme no temido "segundo mergulho", que poderia levar os EUA ao território deflacionário, com consequências sérias para a economia mundial. À luz disso, só a obsessão equivocada com a taxa de câmbio real-dólar (deixando de lado todas as demais moedas diante das quais o real se depreciou) poderia explicar a reação de certas autoridades.
Ignorando que o QE2 é uma tentativa de acelerar a demanda interna, tal mania os leva a interpretá-la como uma estratégia para desvalorizar o dólar (numa economia em que exportações representam meros 12% do PIB!), enquanto engolem placidamente práticas bem mais deletérias por parte de outros países.
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