Antonio Delfim Netto, especialmente para o VALOR ECONÔMICO de 01.11.2011.
A crise que o mundo está vivendo tem aspectos
paradoxais. Presta-se a múltiplas interpretações, cada uma delas colocando,
segundo o viés ideológico do analista, seu foco sobre os diferentes aspectos em
que ela se revela. Os economistas do "mainstream" estão na defensiva
por terem demonstrado "matematicamente" (e até conseguido prêmios
Nobel) que os mercados (em particular o financeiro) eram eficientes e
autoadministráveis. Dispensavam, portanto, a "mão visível" do
governo.
Os economistas com viés marxista não deram um
passo além da constatação do velho Karl: os mercados financeiros são
essencialmente instáveis. Pela centésima vez proclamam o rápido fim do
capitalismo, como se ele fosse uma coisa e não um processo histórico com as
"contradições" que o dinamizam e o civilizam lentamente pelo sufrágio
universal.
Os economistas com viés keynesiano hidráulico
(incorporado ao "mainstream") assistiram ao irremediável fracasso dos
seus "multiplicadores". Mecanizaram as sofisticadas considerações
psicológicas do papel das expectativas e a inevitabilidade da incerteza sobre o
futuro opaco. Essas continuaram a ser cultivadas apenas por um pequeno grupo,
expulso da profissão como "heterodoxo".
Os economistas do "mainstream" foram,
no máximo, apenas coadjuvantes da crise. Quatro anos depois de instalada, é
evidente que sua "causa eficiente" foi a rendição dos governos à
pressão econômica do único poder universal emergente: os mercados financeiros!
Apenas teorizaram "a posteriori" a luta entre o poder incumbente e o
mercado financeiro, que queria livrar-se do controle que lhe fora imposto nos
anos 30 do século passado (exatamente por ter causado a crise de 1929).
Deram-lhe um suposto apoio científico. Papel
coadjuvante, mas importante para a aceitação, pela sociedade desprevenida, da
ideologia (vendida como ciência) que a desabrida liberdade das
"inovações" do mercado financeiro e sua internacionalização eram
fatores decisivos para o aumento da produtividade da economia real e para o
desenvolvimento econômico dos países.
Hoje, os americanos parecem ter clara consciência
de quem é a "culpa" pela tragédia que estão vivendo. Um levantamento
da Gallup (15/16 outubro) mostrou que 2/3 das pessoas consultadas a atribuem ao
governo federal e 1/3 às instituições financeiras. Mas o fato ainda mais grave (e
que coloca em risco a reeleição do presidente Obama) é que a
"qualidade" do programa posto em prática pelo governo de Washington
para enfrentar a crise é considerada lamentável: mais de um US$ 1 trilhão de
estímulos e quase quatro anos depois, o crescimento é pífio e o desemprego
altíssimo. O verdadeiro conhecimento empírico e teórico da economia poderia ter
sido melhor utilizado na formulação do programa, como mostraram em interessante
artigo J.F.Cogan e J.B.Taylor ("Where Did the Stimulus Go?").
O US$ 1 trilhão de estímulo foi dividido em três
programas de inspiração keynesiana-hidráulica: 1) colocar dinheiro diretamente
nas mãos dos cidadãos (cheques do Tesouro) para que eles o gastassem em consumo
(US$ 152 bilhões); 2) disponibilizar recursos para compras governamentais e
infraestrutura (US$ 862 bilhões); e 3) transferir verba para Estados e governos
locais, na esperança que ampliassem seus gastos com bens e serviços (US$ 173
bilhões).
Como se deveria esperar, em razão de experiências
anteriores e desenvolvimentos teóricos, eles não produziram qualquer efeito
"multiplicativo" importante, ao contrário do que haviam previsto os
assessores econômicos de Bush e Obama.
A ineficiência do primeiro estímulo é
consequência das pesquisas de Milton Friedman e Franco Modigliani, que
mostraram que o consumo está ligado à renda "permanente" e não a um
estímulo ocasional, frequentemente utilizado para "diminuir as
dívidas" dos agentes, que foi o que aconteceu.
Quanto ao segundo, devido às dificuldades
operacionais que sempre acompanham aumentos inusitados de disponibilidade de
recursos no serviço público (a falta de bons projetos e a indisposição da
burocracia, elementos amplamente conhecidos e empiricamente constatados), não
se gastou até o terceiro trimestre de 2010 mais do que 5% do estimado!
Quanto aos estímulos transferidos para Estados e
governos locais, eles tiveram o mesmo destino dos enviados diretamente aos
consumidores: foram basicamente utilizados na redução de dívidas. De fato, dos
US$ 173 bilhões transferidos, 4/5 foram utilizados no pagamento de dívidas
acumuladas, o que praticamente anulou o efeito físico do
"multiplicador". Aqui, também, já havia evidência empírica (Ned
Gramlich, 1979) mostrando a ineficiência desse tipo de programa.
Esses fatos mostram o quanto de
"ilusão" estatística está envolvida no cálculo descuidado e ingênuo
dos "multiplicadores" ditos "keynesianos", quando se
esquece o próprio Keynes. Se na prevenção da crise e na sua construção podemos
criticar o "mainstream", parece que lhe devemos um crédito na crítica
do horrível projeto de recuperação de inspiração do
"keynesianismo-hidráulico" que desperdiçou US$ 1 trilhão...