Renato Janine Ribeiro é professor titular de
ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreveu este artigo
especialmente para o VALOR ECONÔMICO de hoje.
O conflito na Universidade de São Paulo é um assunto
político relevante. É uma crise "na" USP, não é a crise
"da" USP, porque ela continua sendo a melhor universidade brasileira. Não é a PM que está
em jogo. Ela é, se tanto, pretexto, sintoma ou álibi. Podemos resumir a questão
em duas frases: é nossa melhor universidade e a única universidade pública
brasileira que não tem eleição direta para seu reitor. Há relação entre
esses dois fatos? É a melhor porque não elege seu reitor, ou apesar disso? Cada
lado responde de um jeito. A universidade mais próxima da USP, a respeitada
Unicamp, elege seu reitor. O mesmo fazem a UFMG, a Unesp e a UFRJ. Então? Temos
na USP um conflito áspero entre quem quer uma universidade
"democrática" - entendendo por isso a eleição de seus dirigentes
pelos professores, alunos e funcionários, mas não pelo povo (demos em grego,
lembremos) - e os que têm como principal questão a qualidade da pesquisa. Quem
quer qualidade se incomoda com a retórica da eleição direta, demasiado
politizada. Mas o esquema uspiano de escolha do reitor é um fracasso histórico.
Graças a ele o titular do cargo faz o sucessor, o que acontece desde 1989, com
duas exceções, a mais recente datando de 2009, quando o governador José Serra
nomeou o segundo da lista tríplice. Esse esquema faz que a comunidade não sinta
o reitor como um líder que ela apoia.
O
sistema de escolha na USP é único no Brasil. No primeiro turno, votam membros
das Congregações e Conselhos Centrais, quase 2 mil pessoas, na maioria
professores. Isso não é ruim. Ruim é que seu voto vale pouco. Cada um pode
sufragar até três professores titulares (qualquer deles, pois não há
candidaturas formais). Os oito mais votados vão a um segundo turno, perante um
colégio de 360 membros, composto pelos Conselhos Centrais, sobre os quais a
reitoria tem forte influência. Esse colégio envia uma lista tríplice ao
governador, que costuma nomear o mais votado. Mas, quando Serra escolheu o
segundo, a universidade nem chiou - sinal de que nem ela leva muito a sério sua
própria votação. A ideia original do sistema era que nomes surgissem
espontaneamente, de modo que, sem fazer campanha, algum valor notável
despontasse dentre os oito, depois entre os três, e acabasse escolhido pelo
governador. Mas nunca foi assim. Sempre a disputa se polarizou, desde o início,
entre dois ou três nomes.
O
que fazer? O mais simples é eliminar o segundo turno e passar a decisão para o
colégio amplo. Ou, mais radicalmente, seguindo o que a lei federal faculta,
instituir uma eleição direta na qual os votos dos professores pesem 70%,
ficando funcionários e alunos (e talvez ex-alunos) com 30%. Mas a representação
sindical e a dos alunos querem bem mais que isso, o que apavora os bons
pesquisadores, receosos de que a universidade seja tomada por micropartidos
políticos. Daria para chegar a um acordo que, pelo menos, reduzisse o poder da
reitoria na escolha do sucessor. Mas não há conversa. Relatei o assunto no
Conselho Universitário, este ano, e metade dos que falaram defendeu uma
"estatuinte": o curioso é que vários oradores nem mencionaram o
assunto em pauta, que era a eleição do reitor...
Posso atestar, por minha experiência na Capes, convivendo
com reitores do Brasil todo, que a eleição direta, apesar de trazer o risco da
escolha de um reitor demagogo e sem compromisso com a qualidade, tem levado a
bons reitores ou, pelo menos, razoáveis. Isso não quer dizer que o sistema seja
perfeito. Desde Tarso Genro, é política do MEC nomear o mais votado - mas sei
que, quando ele levou ao presidente da República sua proposta de reforma
universitária, depois sepultada, Lula foi taxativo: não tiraria da lei a lista
tríplice. Na prática, o ministro nomeia o preferido da comunidade; mas as
universidades federais não têm a autonomia das paulistas. A USP, Unesp e
Unicamp não precisam ir a cada mês pedir dinheiro ao governo. As universidades
federais, sim. Daí, também, que no período democrático nunca um reitor paulista
tenha declarado apoio a um candidato a governador ou presidente. Já a grande
maioria dos reitores federais é induzida a apoiar o candidato do PT, como se
viu em 2006 e 2010. Em suma, nada disso é simples. Os reitores federais,
eleitos, têm apoio da comunidade, mas pouca autonomia em face do governo
federal.
Não
estamos na situação em que um lado é inteiramente certo e o outro, totalmente
errado. Mas talvez o maior problema esteja em confundir poder e autoridade.
A reitoria tem poder. Os defensores da eleição direta querem democratizar esse
poder. Mas, numa boa universidade, o poder é menos que a autoridade: o respeito
que alguém conquista por sua qualidade ética ou, no caso, científica. Não há
nomeação ou eleição que confira autoridade. Disputar o poder é perder o que é
próprio de uma boa universidade.
Mesmo
assim, é preciso negociar. Um lado tem o poder, sabe que é impossível - salvo
uma improvável revolução que tivesse por meta principal mudar a escolha do
reitor da USP - alterar o Estatuto sem o Conselho Universitário, e conclui que
basta aguentar duas invasões da reitoria por ano. O atual reitor tinha prometido
mudar as regras de escolha no seu primeiro ano de mandato; está para vencer o
segundo e não o conseguiu. Já o outro lado é mobilizado, procura tornar o
reitor antipático, provavelmente não é majoritário na USP e não parece querer
negociar uma solução intermediária. Daí, um impasse desnecessário e que mancha
a imagem externa da USP - na qual, enquanto isso, ótimos pesquisadores, da
Medicina à FFLCH, continuam seu trabalho.
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