Mudar a periodicidade de cálculo da
inflação anual acumulada para efeito de cumprimento da meta oficial,
preferencialmente para 24 meses, dando tempo para absorção de choques de oferta
imprevisíveis e passageiros, é uma das receitas do economista Luiz Fernando de
Paula, 52 anos, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e
presidente da Associação Keynesiana Brasileira (AKB), entidade que congrega
seguidores do pensamento do economista inglês John Mainard Keynes (1883-1946).
"Eu diria que se no próximo ano
tivermos uma inflação acima do centro da meta, perto da banda, eu não acharia o
pior dos mundos se, alternativamente, tivéssemos um crescimento econômico mais
vigoroso. É um risco que eu acho que vale a pena correr", disse. Para ele,
o cenário externo adverso abre espaço para uma política econômica com juro
menor e real menos valorizado.
Na entrevista que deu ao Valor ele
defendeu também a mudança da remuneração da Caderneta de Poupança (TR mais 6%
ao ano) como forma de não atrapalhar a queda dos juros e disse que, embora a
presidente Dilma Rousseff tenha recebido uma "herança maldita",
representada pela crise internacional, a política monetária está no rumo certo.
Também elogiou a condução da atual diretoria do Banco Central (BC) e afirmou
que o país ainda pode crescer em meio à crise, baseado no mercado interno,
desde que a crise não se aprofunde ainda mais. A seguir, os principais trechos
da entrevista:
Valor: Recentemente o ex-ministro Luiz
Carlos Bresser Pereira disse que agora temos um Banco Central nacional. As
mudanças no BC marcam uma diferenciação clara da política econômica de Dilma em
relação à de Lula? Que outras características marcam as diferenças entre as
duas políticas econômicas?
Luiz Fernando de Paula: Sem dúvida, o BC
passou a ter uma atuação mais técnica e mais independente do mercado
financeiro, o que deve ser saudado. O que o BC, na gestão de Alexandre Tombini,
está fazendo é não ficar olhando a economia apenas pelo retrovisor, mas também
passando a olhar o que poderá acontecer com a economia para a frente. Isso faz
sentido porque no regime de metas de inflação a previsão da inflação é um
elemento fundamental, já que a taxa de juros tem efeito cerca de seis meses
para frente. Contudo, é importante destacar que não há uma mudança no regime de
política econômica, em que pese a grita geral dos "falcões do
mercado" quando o BC reduziu no fim de agosto a taxa de juros. Há alguma
diferenciação na condução da política econômica dentro do marco do regime
vigente. Procura-se resgatar o sentido de uma maior coordenação entre política
monetária e política fiscal, com vista à redução na taxa de juros básica da
economia, que é a grande "jabuticaba" brasileira. A piora no cenário
internacional abre uma janela de oportunidade para uma mudança no mix
"juros altos-câmbio apreciado", que deve ser aproveitada.
Valor: Como o sr. analisa a economia
neste primeiro ano de mandato da presidente? A crise econômica restringiu a
gestão a ações reativas ou é possível enxergar uma gestão propositiva mesmo
durante a crise?
Paula: Dilma recebeu uma "herança
maldita", mas o mesmo pode-se dizer de quando Fernando Henrique Cardoso e
Lula iniciaram seus governos. No caso da Dilma, ela herdou uma piora crescente
no cenário internacional, como o aumento nos preços de commodities, com
impactos sobre a inflação doméstica, e sobretudo os desdobramentos da crise nos
EUA e na zona do euro que já começam a ter impacto sobre o crescimento da
economia chinesa, nossa grande importadora de commodities. A China, por conta
das pressões inflacionárias, não poderá dar a virada que fez em 2009, quando
redinamizou a economia doméstica com forte crescimento dos investimentos
públicos em infraestrutura. Tudo isso, obviamente, vai ter impacto negativo
sobre a economia brasileira. Contudo, como dizem os orientais "crise é
oportunidade", e o Brasil pode aproveitar a ocasião para fazer uma espécie
de "virada", crescendo para o mercado interno, sem se descuidar do
problema da restrição externa ao crescimento, isto é, evitando déficits
crescentes em transações correntes. Assim, acredito que é possível fazer uma
gestão propositiva mesmo durante a crise.
Valor: Entramos em nova fase de estímulo
ao crescimento. Como evitar a recessão sem realimentar a inflação?
Paula: Olha, qualquer prognóstico sobre
2012 é complicado. Há variáveis aí que você não domina. A não retomada do
crescimento americano - não é que os Estados Unidos vão entrar em recessão -,
que efeitos terá sobre a China e, consequentemente, sobre as exportações
brasileiras? O Brasil já vem com uma desaceleração endógena, independente da
crise. Essa desaceleração tem um caráter conjuntural e um estrutural.
Conjuntural é que, do ponto de vista dos componentes da demanda, todos
contribuíram para a desaceleração. O investimento se desacelerou, o consumo
privado se desacelerou e também as exportações líquidas e o gasto do governo
por conta da manutenção do superávit primário. A economia patinou. A questão do
câmbio teve impacto forte do ponto de vista de uma possibilidade de crescimento
pelo lado das exportações. E tem o lado estrutural que é a questão que você tem
uma tendência à apreciação da taxa de câmbio que vem ali desde 2005 muito
forte. A indústria vinha dando alguns sinais de um processo de desindustrialização
que não se fazia sentir porque o mercado interno estava crescendo de forma
muito acelerada. Compensava-se parcialmente o desestímulo que vinha pelo lado
do câmbio. Agora, o que se está observando desde 2010, e mais agudamente em
2011, é que o movimento defensivo da indústria foi no sentido de importar, ou
seja, teve um crescimento das importações que entra pelo lado dos bens de
consumo, dos bens de capital e dos insumos básicos. Isso me parece que chegou
no osso da indústria. Eu acho que chegamos nesse ponto de preocupação, mas eu
vejo que, por outro lado, você tem alguns elementos interessantes do ponto de
vista da política econômica, uma tentativa de mudança do mix de política e eu
acho que nós podemos tentar dar uma virada para o mercado interno. É difícil
fazer comparações históricas, mas acho que a gente está em uma situação um
tanto semelhante à da década de 30, quando tivemos a crise do modelo
agroexportador e a economia voltou-se para o mercado interno, com um processo
de substituição de importações, e teve um crescimento vigoroso em meio a uma
crise mundial. A partir de 1932 o Brasil já estava voltando a crescer.
Evidentemente que a situação é diferente. Nós temos uma indústria hoje. Mas uma
indústria que está sendo castigada pela política de câmbio e política
monetária. Eu acho que se o governo conseguir dar essa virada, fazendo uma
política bem pragmática, mas firme, acho, quem sabe, que a gente possa
aproveitar a ocasião para crescer de forma vigorosa.
Valor: Essa guinada pode ser feita com a
economia relativamente aberta, como hoje, ou é preciso algum esforço de
proteção à indústria? E, novamente, pisar no acelerador para dentro não pode
desencadear novo surto inflacionário?
Paula: Olha, economia sempre tem riscos.
De qualquer forma, de 2000 a 2011 vários países tiveram uma aceleração da taxa
de inflação. Foi o caso da China, da Índia. Claro, inflação é sempre
preocupante. Mas não é o pior dos mundos. Eu diria que se no próximo ano a
gente tiver uma inflação acima do centro da meta, perto da banda, eu não
acharia o pior dos mundos se, alternativamente, tivéssemos um crescimento
econômico mais vigoroso. É um risco que eu acho que vale a pena correr. Agora,
tudo depende dos desdobramentos da crise mundial. Pode ser que os efeitos se
configurem mais graves e, além dos efeitos mais imediatos. Você tem o efeito
expectacional que é importante, mas que é subjetivo, difícil de mensurar.
Perante a crise é natural que as pessoas ponham o pé no freio porque não sabem
qual o tamanho do tombo que vem pela frente. Então, os consumidores vão poupar
mais e gastar menos, os empresários vão querer investir menos, os banco vão
querer emprestar menos...
Valor: Quando começou a fazer a redução
da taxa de juros, o BC foi criticado pelo mercado como subordinado à vontade
política da presidente, que pediu a redução dias antes. Agora, se fala que o BC
demorou a agir diante da crise, como ocorreu em 2008/09, resultando daí a
desaceleração excessiva do PIB e, particularmente, do consumo das famílias.
Quem está com a razão?
Paula: Certamente, não tem razão quem
criticou a política de redução de juros. O BC, como assinalado, teve um
comportamento "forward-looking" (de olhar para a frente). O que se
espera de um bom banqueiro central é justamente alguma capacidade de
discernimento perante cenários nebulosos. Em dezembro de 2010 ele adotou um
conjunto de medidas macroprudenciais, parcialmente relaxadas recentemente,
visando a redução dos prazos e desaceleração do crédito ao consumidor (veículos
e pessoal), que teve um efeito importante de evitar uma bolha de crédito, mas
que acabou afetando negativamente os gastos das famílias. O BC não sabia ao
certo quais seriam os efeitos de tais medidas. Junto com isso, há uma
desaceleração na taxa de investimento em curso, em função de uma combinação
entre efeitos da longa apreciação cambial sobre desempenho das exportações
líquidas, arrefecimento do consumo das famílias e política de contenção dos
gastos públicos. Há um processo de desaceleração endógeno do setor industrial
no Brasil, que poderá ser agravado pela piora no cenário externo. Por isso a
economia estagnou no segundo semestre de 2011.
Valor: Diante do quadro doméstico e
internacional, o que esperar de 2012?
Paula: É difícil fazer prognósticos em
função de um cenário internacional bastante problemático, cujos desdobramentos
são muito incertos. Curiosamente, o aumento no salário mínimo, que seria uma
espécie de "bomba relógio" em 2012 em função de seus efeitos
fortemente expansionistas sobre as transferências previdenciárias e sobre e
renda agregada da economia, servirá para evitar uma desaceleração maior no
gasto doméstico. O governo terá que acompanhar com lupa o comportamento da
economia brasileira, mantendo sua política de redução de juros e, se for
necessário, adotando algumas medidas adicionais de estímulo, como redução no
compulsório dos bancos e estímulos fiscais pontuais ao consumo. Um esforço de
crescimento nos investimentos públicos em infraestrutura poderá contribuir para
usar o investimento autônomo de forma contracíclica, já que alguns dos
instrumentos usados em 2008-09 não estarão disponíveis, como a expansão do
crédito dos bancos públicos. Enfim, se conseguirmos crescer em torno de 4% em
2012, mantendo a taxa de inflação próximo ao centro da meta, ainda que um pouco
maior, será uma vitória.
Valor: Em recente seminário de partidos
de esquerda vários economistas pediram a desvalorização do real como saída para
conter a perda de competitividade da indústria doméstica. É possível o país
abandonar o câmbio flutuante e manter o regime de metas de inflação?
Paula: Sem dúvida, há fortes indícios de
que a economia brasileira passa por um processo de desindustrialização precoce,
isto é, uma desindustrialização que se inicia com um nível de renda per capita
menor ao observado nos países desenvolvidos e sem atingir uma certa
homogeneidade nos níveis de produtividade entre diferentes setores. O valor
adicionado da indústria de transformação no valor agregado total caiu de 17,1%
no segundo trimestre de 2007 para 15,3% no segundo trimestre de 2011, segundo
dados da professora Carmem Feijó, da Universidade Federal Fluminense. Por outro
lado, o coeficiente de penetração das importações, medido pela Confederação
Nacional da Indústria e correspondente à participação dos produtos importados
no consumo domésticos dos bens industriais, cresceu de 12,1% em 2003 para 21,5%
em 2011, sendo que a balança comercial brasileira é estruturalmente deficitário
em bens de maior intensidade tecnológica. Há ainda uma desindustrialização
relativa em curso também, pois o crescimento do setor industrial dos outros
países emergentes tem sido bem acima do crescimento brasileiro. Acredito que a
redução na taxa real de juros, somada aos controles de capitais, poderá
contribuir para termos uma taxa de câmbio mais competitiva, sem inviabilizar o
regime de metas de inflação. Eu avaliaria seriamente a possibilidade de se
introduzir um imposto sobre as exportações de algumas commodities, em caso de
termos um câmbio mais depreciado.
Valor: O regime de metas de inflação
ainda é o meio mais eficiente de controle dos agregados monetários para
manutenção da estabilidade macroeconômica?
Paula: Depende do que se entende por estabilidade
macroeconômica. Meu entendimento é que estabilidade macroeconômica significa
criar condições para compatibilizar crescimento econômico sustentado,
estabilidade financeira e estabilidade de preços. Países que adotaram regime de
metas de inflação em geral já vinham de uma tendência de redução na taxa de
inflação. Países como China e Índia, com crescimento vigoroso nos últimos 20
anos e sem descontrole inflacionário, utilizam outro regime de política
macroeconômica, com conversibilidade restrita na conta capital, câmbio
administrado, semifixo no caso da China e flutuante administrado no caso da
Índia, e sem uso de um regime de metas de inflação. No caso do Brasil, no
momento atual, eu sugeriria algumas mudanças no regime de metas de inflação,
como o caso de uma mudança no período de convergência da inflação corrente para
a meta, passando do ano calendário para, por exemplo, "inflação acumulada
em 12 meses" ou para 24 meses. A ideia subjacente é que choques não
previsíveis têm efeitos defasados na economia, de modo que o cumprimento da
meta em apenas um ano - se possível - é mais custosa em termos de crescimento
do produto e do emprego. Para períodos mais longos ou móveis, seria possível
atenuar esses efeitos, sem necessidade de uma resposta mais abrupta da taxa de
juros.
Valor: Realisticamente, qual o mix de
política econômica a se esperar para 2012?
Paula: Uma busca de mudar o mix de
política econômica para uma taxa de juros mais baixa e um câmbio mais
depreciado. O governo poderia aproveitar a ocasião de tendência à redução na
taxa de juros para fazer uma alteração maior no perfil da dívida pública,
diminuindo significativamente a participação de títulos indexados à Selic
(LFTs) no total da dívida pública mobiliário, hoje na casa dos 30%. Isso melhoria
o funcionamento dos canais de transmissão da política monetária e contribuiria
sobremaneira para o desenvolvimento do mercado de títulos corporativos
privados. Eu defendo que o governo utilize uma política de Imposto de Renda
mais agressiva para desestimular as aplicações de curto prazo. Outro elemento
da indexação financeira que o governo Lula tentou mexer, mas acabou que não
precisando, mas que a Dilma vai ter que mudar, é algo extremamente popular: a
remuneração da poupança. Você não pode manter a TR (Taxa Referencial) mais 6%.
O que vai acontecer? Em algum momento, quando a taxa de juros cair as pessoas
vão correr para as aplicações de poupança. Quando começar a chegar perto disso
o governo vai ter que mexer. Ou vai ter que manter a taxa de juros para não
provocar essa corrida de recursos. Vai ter que mexer nisso e colocar
remuneração em termos de mercado. É um negócio extremamente complicado, é uma
coisa sagrada, vem desde os anos 1970, mas vai ter que se mexer nisso.