Fernando Henrique, para iniciar a semana, no ESTADÃO e no GLOBO.
As
notícias da semana que terminou não foram auspiciosas, nem no plano
internacional nem no local. Uma decisão da Corte Suprema da Argentina, sob
forte pressão do governo, sancionou uma lei que regula a concessão de meios de
comunicação. Em tese, nada de extraordinário haveria em fazê-lo. No caso,
entretanto, trata-se de medida tomada especificamente contra o grupo que
controla o jornal “El Clarín”, ferrenho adversário do kirchnerismo. Cerceou um
grupo de comunicação opositor ao governo sob pretexto de assegurar pluralidade
nas normas de concessão. Há, contudo, tratamento privilegiado para o Estado e
para as empresas amigas do governo.
Da
Venezuela, vem-nos uma patuscada incrível: as cidades do país apareceram
cobertas de cartazes contra a “trilogia do mal”, ou seja, os principais líderes
opositores, aos quais se debitam as falências do governo! Seria por causa deles
que há desabastecimento, falta de energia e crise de divisas, além da inflação.
Tudo para incitar ódio popular aos adversários políticos do governo,
apresentando-os como inimigos do povo.
O
lamentável é que os governos democráticos da região assistem a tudo isso como
se fosse normal e como se as eleições majoritárias, ainda que com acusações de fraudes,
fossem suficientes para dar o passaporte democrático a regimes que são coveiros
das liberdades.
No
Brasil, também há sinais preocupantes. Às manifestações espontâneas de junho se
têm seguido demonstrações de violência, desconectadas dos anseios populares,
que paralisam a vida de milhões de pessoas nas grandes cidades. A estas se
somam às vezes atos violentos da própria polícia. Com isso, deixa-se de
ressaltar que nem toda ação coercitiva da polícia ultrapassa as regras da
democracia. Pelo contrário, se nas democracias não houver autoridade legítima
que coíba os abusos, estes minam a crença do povo na eficácia do regime e
preparam o terreno para aventuras demagógicas de tipo autoritário.
Temos
assistido ao encolhimento do Estado diante da fúria de vândalos, aos quais
aderem agora facções do crime organizado. Por isso, é de lamentar que o
secretário-geral da Presidência se lamurie pedindo mais “diálogo” com os black
blocs, como se eles ecoassem as reivindicações populares. Não: eles expressam
explosões de violência anárquica desconectadas de valores democráticos, uma
espécie de magma de direita, ao estilo dos movimentos que existiram no passado
no Japão e na Alemanha pós-nazista.
Esses
atos vandálicos dão vazão de modo irracional ao mal-estar que se encontra
disseminado, principalmente nas grandes cidades, como produto da insensatez da
ocupação do espaço urbano com pouca ou nenhuma infraestrutura e baixa qualidade
de vida para uma aglomeração de pessoas em rápido crescimento. O acesso caótico
aos transportes, o abastecimento de água deficiente e a rede de serviços
(educação, saúde e segurança) insuficiente não atendem às crescentes demandas
da população. Sem mencionar que a corrupção escancarada irrita o povo. Não é de
estranhar que, conectados aos meios de comunicação, que tudo informam, os
cidadãos queiram dispor de serviços de países avançados ou de padrão Fifa, como
dizem. Sendo assim, mesmo que a situação de emprego e salário não seja ruim, a
qualidade de vida é insatisfatória. Quando, ainda por cima, a propaganda do
governo apresenta um mundo de conto da Carochinha, e o cotidiano é outro, muito
mais pesado, explicam-se as manifestações, mas não se justificam os
vandalismos.
Menos
ainda quando o crime organizado se aproveita desse clima para esparramar terror
e coagir as autoridades a não fazer o que deve ser feito. Estas precisam
assumir suas responsabilidades e atuar construtivamente. É necessário dialogar
com as manifestações espontâneas, conectadas pela internet, e dar respostas às
questões de fundo que dão motivos aos protestos. A percepção de onde o calo
aperta pode sair do diálogo, mas as soluções dependem da seriedade, da
competência técnica, do apoio político e da visão dos agentes públicos.
Os
governos petistas puseram em marcha uma estratégia de alto rendimento econômico
e político imediato, mas com pernas curtas e efeitos colaterais negativos a
prazo mais longo. O futuro chegou, na esteira da falta de investimento em
infraestrutura, do estímulo à compra de carros, do incentivo ao consumo de gasolina,
em detrimento do etanol, e do gasto das famílias via crédito fácil, empurrado
pela Caixa Econômica Federal. Os reflexos aparecem nas grandes cidades pelo
país afora: congestionamentos, transporte público deficiente, aumento do nível
de poluição atmosférica etc.
De
repente caiu a ficha do governo: tudo pela infraestrutura, na base da
improvisação e da irresponsabilidade fiscal. Primeiro, o governo federal
subtraiu receitas de estados e municípios para cobrir de incentivos a produção
e compra de carros. Depois, em vista do “caos urbano” e da proximidade das
eleições, afagou governadores e prefeitos, permitindo-lhes a contratação de
novos empréstimos, sobretudo para gastos em infraestrutura. A mão que os afaga
é a mesma que apedreja a Lei de Responsabilidade Fiscal, ferida gravemente pela
destruição de uma de suas cláusulas pétreas: a vedação ao refinanciamento de
dívidas dentro do setor público. Mais uma medida, esta especialmente funesta,
que alegra o presente e compromete o futuro.
Não
haverá solução isolada e pontual para os problemas que o país atravessa e as
grandes cidades sentem mais do que quaisquer outras. Os problemas estão
interconectados, assim como as manifestações e demandas. Não basta melhor
infraestrutura se o crime organizado continua a campear, nem ter mais hospitais
e escolas se a qualidade da Saúde e da Educação não melhora. As soluções terão
de ser iluminadas por uma visão nova do que queremos para o Brasil. Precisamos
propor um futuro não apenas materialmente mais rico, mas mais decente e de
melhor qualidade humana. Quem sabe assim possamos devolver aos jovens e a todos
nós causas dignas de serem aceitas, que sirvam como antídoto aos impulsos
vândalos e à complacência com eles.