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sábado, 8 de agosto de 2020
Folha: LUTO - 08/08/2020 - 100.000.
https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/08/luto.shtml
Aos poucos o país vai voltando ao normal —um normal de incúria diante do sofrimento da população. Alcançamos a marca de 100 mil mortos por Covid-19, e por toda parte se vê o abandono progressivo do distanciamento social.
Cem mil mortos em cinco meses. Nessa marcha, o novo coronavírus terminará 2020 como terceira maior causa de morte no país, atrás somente das doenças cardiovasculares e do câncer.
Governadores e prefeitos que se jactavam de sucesso, a exemplo de estados da região Sul, assistem impotentes à alta descontrolada de casos, já nos 3 milhões, e óbitos.
O Brasil ocupa a segunda posição em número absoluto de contaminados e mortos, após os EUA, que chegam a 160 mil falecimentos (em proporção populacional, já os alcançamos). Não é improvável que os ultrapassemos, pois aqui ainda se testa pouco e mal, e a epidemia segue fora de controle em várias localidades.
A cada sete mortos no mundo, um é brasileiro. A média diária de mais de mil mortos por dia se repete por dois meses inteiros. Não é, não deveria ser normal.
O péssimo desempenho do poder público no enfrentamento da pandemia se mostra tanto mais revoltante por evitável. Afinal, o primeiro caso no país se registrou dois meses após o vírus começar a grassar na China; na primeira morte, em meados de março, a Covid-19 já tinha prostrado a Itália.
Os governos tiveram tempo e tinham o Sistema Único de Saúde a postos para uma reação coordenada. Não foi tampouco falta de recursos, em que pese a crise orçamentária, porque agora se despejam dezenas de bilhões em ajuda emergencial sem que se tenha visto prevenção mais eficiente.
O maior responsável pela tragédia se chama Jair Bolsonaro. Em vez de liderar uma ação nacional, negou a gravidade da emergência de saúde pública, promoveu aglomerações e falsas terapias, como a cloroquina, e colheu oito casos de ministros infectados (outro provável recorde mundial), além de si próprio e da primeira-dama.
Alguns comemoram, no presente, o suposto advento de uma imunidade coletiva como chamado para arrebanhar clientes desgarrados de bares, restaurantes, academias e centros de compras —não das escolas, paradoxalmente. Epidemiologistas, entretanto, descartam que se tenha alcançado tal limiar.
Não há panaceia nem vacina por ora. Infeliz a nação que tem necessidade de heróis, disse Bertolt Brecht; mais que infelicidade, a desdita do Brasil é nem mesmo poder contar com um presidente e um ministro da Saúde efetivo neste momento de luto.
O Globo: 100 mil mortos, uma tragédia do tamanho do Brasil.
https://oglobo.globo.com/opiniao/100-mil-mortos-uma-tragedia-do-tamanho-do-brasil-1-24574686
Em 17 de março, quando o Brasil registrava 290 casos e apenas uma morte pelo novo coronavírus, o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, previu que os números cresceriam exponencialmente até o fim de junho. Em julho estabilizariam e, em agosto, começariam a cair. Num cenário em que os fatos correm mais que o tempo, quase cinco meses depois, não há mais Mandetta, exonerado pelo presidente Jair Bolsonaro em 16 de abril. Agosto está aí — e o panorama é um país ainda perdido em meio ao avanço da Covid-19. Os infectados passam de 2,9 milhões, e os mortos chegam à marca macabra de 100 mil. Para ter ideia da dimensão da catástrofe, o contingente supera a soma de duas conhecidas tragédias nacionais: todos os óbitos no trânsito (40.721) e todos os assassinatos (41.635) em 2019.
Não se chegou a tal número por acaso. Ele foi construído cotidianamente, por erros e omissões de um governo que trocou a Ciência pelo obscurantismo. Claro que governadores e prefeitos — com autonomia dada pelo STF para impor medidas de restrição e liberdade para fazer compras emergenciais (muitas das quais viraram caso de polícia) — também deixaram suas digitais na hecatombe. Mas é inequívoca a responsabilidade do presidente Jair Bolsonaro, a quem cabia, por meio do Ministério da Saúde, coordenar o combate à mais letal pandemia em cem anos.
Bolsonaro começou minimizando a pandemia. Tratou a doença como “gripezinha” e, questionado sobre os mortos, soltou um revoltante “E daí?”. Mais preocupado com seu projeto de reeleição, atacou o isolamento social decretado por governadores e prefeitos — eficaz para impedir o avanço da doença na falta de vacinas ou remédios — e pregou a reabertura imediata das atividades. Alegou que a população não morreria de Covid, mas de fome. Simulou um falso dilema, já que, quanto antes a epidemia estiver controlada, mais rapidamente a economia voltará a girar.
O Ministério da Saúde é o melhor exemplo do pouco caso com a epidemia. Em menos de quatro meses, foram três ministros. Mandetta e seu substituto, Nelson Teich, saíram por discordar de Bolsonaro. O general Eduardo Pazuello permaneceu por concordar, no melhor estilo “missão dada é missão cumprida”. Está há mais de dois meses no cargo como interino, prova do esvaziamento da pasta em plena pandemia. Uma de suas primeiras decisões foi liberar a cloroquina para qualquer fase do tratamento, ignorando evidências científicas de que ela não tem eficácia contra o coronavírus e pode causar sérios efeitos colaterais. O país produziu comprimidos de cloroquina aos milhões, sabe-se lá para quê. Estima-se que haja estoque para abastecer por 38 anos o mercado nacional.
A cloroquina virou obsessão de Bolsonaro, transformado em garoto-propaganda do medicamento. Ele próprio, quando contraiu o vírus, apareceu numa transmissão ao vivo com uma caixa em mãos. Numa cena bizarra que decerto ilustrará os futuros livros de história, foi flagrado exibindo uma caixa de cloroquina às emas do Palácio da Alvorada. Até elas pareciam ter consciência do ridículo. A insistência na cloroquina não foi a única ofensa à Ciência. Bolsonaro se especializou em quebrar os protocolos sanitários mais básicos para a prevenção da Covid-19. Em lugares públicos, cumprimentou transeuntes, tossiu, falou alto, desprezou o uso da máscara — chegou a ser obrigado pela Justiça a usá-la — e frequentou aglomerações.
O que o governo deveria fazer não fez: estabelecer protocolos nacionais, lançar uma campanha para incentivar o distanciamento, testar a população para identificar os infectados, isolá-los e rastrear seus contatos, seguindo exemplos de países que controlaram a epidemia, como Coreia do Sul, Austrália ou Alemanha. O Brasil testa pouquíssimo, caminha às cegas no combate à doença. Escolhe sempre o caminho errado. Em meio ao desgoverno, a epidemia avança e escancara as desigualdades gritantes do país. Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostrou que, na cidade do Rio de Janeiro, dos 6.735 óbitos até 13 de junho, 79,6% ocorreram nos bairros de menor Índice de Desenvolvimento Social (IDS). Nas áreas mais pobres, a taxa de letalidade chega a ser o dobro da de regiões ricas (20% contra 10%). Na capital paulista, não é diferente. Os 25 distritos com maior número de mortes por Covid-19 estão na periferia. Juntos, concentram 42,1% dos óbitos.
Números superlativos não devem servir para banalizar a tragédia. Por trás deles, há 100 mil histórias de brasileiros que perderam a vida para o coronavírus. Tal contingente ainda cresce ao ritmo de mais de mil mortes por dia, quase uma por minuto. Produzimos sepultamentos em escala industrial, que nos humilham perante o mundo. O Brasil de Bolsonaro fica atrás apenas dos Estados Unidos de Donald Trump no campeonato macabro da Covid-19.
Em vez de impedir a tragédia, o governo tentou escondê-la. No início de junho, quando a escalada já era desenfreada, decidiu omitir o total de mortos do boletim diário do ministério. Iniciativa inócua, pois um consórcio da imprensa profissional passou a apurar os dados, e o Supremo obrigou o governo a recuar. Bolsonaro deveria saber que não é torturando números que se muda a realidade. Ela está aí, para quem quiser ver. Na quinta-feira, ele disse lamentar a iminência das 100 mil mortes: “Mas vamos tocar a vida, tocar a vida e buscar uma maneira de se safar desse problema”. Obviamente, nenhum dos mortos terá como tocar vida nenhuma. Nem Bolsonaro tem como se safar da responsabilidade pela tragédia e pela vergonha nacional.
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domingo, 2 de agosto de 2020
FHC: Dois centenários - Celso Furtado e Florestan Fernandes.
02 de agosto de 2020 | 03h00
O ser humano é dotado de memória. Mas também se esquece. Há, contudo, pessoas que se transformam em ícones: essas não há como esquecer. Este ano, 2020, se vivos estivessem, e não só em nossa memória, fariam 100 anos Celso Furtado e Florestan Fernandes. Um deixou marcas na economia, o outro na sociologia. Ambos, em nossa história intelectual.
Conheci bem os dois. Fui formado na Faculdade de Filosofia da USP por muitos “mestres”. No meu caso, nenhum foi mais importante do que Florestan, desde que me deu um curso introdutório, em 1949. Celso conheci quando eu fazia, em 1962, uma pesquisa sobre o papel dos empresários no desenvolvimento econômico e fui ao Recife, com Leôncio Martins Rodrigues, para entrevistar alguns deles. Celso, então, já era diretor-superintendente da Sudene. Posso tê-lo visto antes em alguma conferência em São Paulo – também minha memória, aos poucos, está repleta de esquecimentos...
Não me esqueço, porém, de dois episódios. Fomos procurá-lo em seu apartamento, modesto, na Praia de Boa Viagem. Emprestou-nos um jipe da Sudene, com um motorista. Aproveitamos a visita que um casal de jornalistas iugoslavos faria ao Engenho da Galileia, famoso pelas ocupações de Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas, para conhecermos a Zona da Mata. Anos mais tarde, eu detido na Oban, fui minuciosamente inquirido sobre os dois “comunistas” que haviam ido comigo àquelas plagas. Não os conhecia, foram apenas companheiros de viagem. O motorista era também informante da polícia...
Quando Celso e eu já éramos amigos, estava em Barcelona, no inverno de 1986, visitando minha filha Beatriz, que estudava lá. Uma bela manhã tocou o telefone. Era Celso, queria saber se eu também seria nomeado ministro, pois ele fora convidado por José Sarney para ocupar a pasta da Cultura. Teria de deixar a Embaixada do Brasil junto à Comunidade Europeia, em Bruxelas, para onde fora nomeado. Celso, servidor público por excelência, além de grande intelectual, era falado para outros ministérios, como o da Fazenda ou do Planejamento. Coube-lhe o da Cultura, que organizou e ao qual emprestou o prestígio de seu nome.
Disse-lhe que eu não poderia sequer ser cogitado para uma função ministerial porque era senador exercendo a suplência e quem ocuparia minha função no Senado seria o segundo suplente, que era prefeito de Campinas. Teria de renunciar à prefeitura para assumir o Senado. Aconselhei-o a aceitar o ministério, sem que me houvesse perguntado.
Quiseram os fatos que fôssemos amigos. Em Paris, mais de uma vez fiquei no seu apartamento. Da mesma maneira, inúmeras vezes Celso ficou em meu apartamento em Brasília quando eu era senador. Também frequentes foram nossos encontros quando morávamos na França. Ao longo de 1961, Celso, Luciano Martins, de quem ele era muito chegado, eu, e, eventualmente, Waldir Pires almoçávamos juntos.
A amizade, que se manteve, nunca me fez esquecer que foi com seus livros, especialmente A Formação Econômica do Brasil, que comecei a entender as mudanças que ocorreram no País.
Quando, em 1964, estivemos (Celso por alguns meses antes de ir para Yale) a viver em Santiago, moramos juntos. E conosco Francisco Weffort e Wilson Cantoni. Celso havia trabalhado antes na Cepal e, além de ser amigo dos economistas chilenos, era admirado por Prebisch, nosso inspirador e chefe do Ilpes e do BID.
Não sei de outro economista (mais do que isso: cientista social) que tenha influenciado tanto a minha geração como Celso. E muitas outras mais. Não só pelo que renovou na visão sobre a economia (somando Keynes a Prebisch e Kaldor), mas como homem público exemplar.
Inteligente, culto e modesto. Dele as gerações futuras não apenas se recordarão, como lhe serão agradecidas. Celso mostrou-nos o quanto a economia brasileira se integrava à economia mundial e como sem uma ação do Estado teria sido impossível (ou muito mais difícil) avançar tanto quanto avançou. Além do mais, sabia escrever: iniciara a vida na literatura.
O mesmo digo sobre Florestan Fernandes: homem de cultura enciclopédica, conhecia tanto sociologia como antropologia e os escritos dos economistas clássicos não eram misteriosos para ele. De Marx a François Simiand, conhecia-os bem. Mais do que isso: desvendou não só os males da escravidão e dos preconceitos de cor, como também mostrou as bases burguesas em que se assentava o poder no Brasil. Amava as pesquisas, tanto as sociológicas como as antropológicas, mas sabia que sem hipóteses os dados não falam. Sabia interpretar o que conhecia pelas pesquisas. A ele devo o ter-me dedicado à sociologia, que era sua paixão.
Do mesmo modo que no caso de Celso, os escritos de Florestan vieram para ficar. Tanto os sobre A Organização Social dos Tupinambá e A Função Social Da Guerra Na Sociedade Tupinambá, como os estudos sobre os negros no Brasil e sobre o caráter pouco democrático da nossa forma de viver e, sobretudo, de mandar. É de intelectuais dessa têmpera que o Brasil precisa. Que pesquisem e saibam antever o que pode acontecer. Sem medos nem arrogâncias. Com sabedoria.
SOCIÓLOGO, FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA
sábado, 1 de agosto de 2020
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