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domingo, 30 de janeiro de 2022

Gustavo Franco no ESTADÃO: O rascunho da carta de Roberto Campos Neto.

https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,o-rascunho-da-carta-de-roberto-campos-neto,70003964302

Gustavo H. B. Franco, O Estado de S.Paulo

30 de janeiro de 2022 | 05h00

Temos uma regra pela qual o presidente do BC precisa se explicar publicamente, através de uma carta aberta ao ministro, se a meta para a inflação não é cumprida.

Nesses termos, Roberto Campos Neto endereçou 15 páginas a Paulo Guedes em 11 de janeiro. A meta para 2021 era 3,75% com margem de 1,5% para os dois lados, e o IPCA variou 10,06%, 191% da meta.

A carta foi escrita no idioma neutro das atas do Copom. Muito mais poderia ser dito. Um rascunho da carta andou circulando, certamente fake, mas revelador: 

“Excelentíssimo senhor ministro (caro Paulo), 

Era mais fácil se lhe mandasse um zap, ou vários, mas é muito assunto e o corretor gramatical ia me deixar constrangido. Pensei em lhe mandar um áudio, mas a procuradoria desaconselhou. Primeiro de tudo, vamos lembrar que poderia ter sido muito pior. Está acompanhando a Argentina? 

Lá, a inflação bateu 3,8% só em dezembro, depois de 2,5% em novembro. O acumulado no ano deu 50%, e mesmo assim com um bocado de inflação reprimida, pois eles estão com preços congelados. Eles não aprendem.

Pior, tem gente falando em congelamento, ainda que só de combustíveis, feito na época da Nova Matriz.

Há ideias ruins que nunca morrem, a despeito de ficarem meio estragadas. São ideias zumbis, como certa vez as designou Paul Krugman: ideias mortas-vivas que, quando menos se espera, devoram os cérebros dos políticos, um horror. Fica esperto.

Segunda observação: não perca de vista que eu vou ficar nesse emprego até o final de 2024, conforme a nova lei do BC. Eu tenho “estabilidade”, você não, independente de meta ou de mérito. 

Em compensação, já estou me preparando para dois anos de chá de cadeira. Já parou para pensar como é trabalhar com um presidente que não gosta de você, mas não pode lhe demitir, e nem você pode sair?

Bacana essa coisa da independência do Banco Central, mas, convenhamos, o relacionamento com o Palácio, e mesmo com o novo ministro, vai ser uma guerra. 

Terceiro, e antes que eu esqueça, a inflação: lembre que em agosto já tínhamos estourado a meta para o ano. O IPCA deu 0,87% no mês e 5,67% no acumulado do ano, para uma meta (limite) de 5,25%. Esse ano foi uma loucura mesmo, não?

A gente começou a subir os juros na reunião de março, quando passamos de 2% ao ano para 2,75%, e fomos subindo bem gradualmente. Só na reunião de dezembro chegamos a 9,25% com o IPCA para o ano já ultrapassando 10%.

Muitos criticaram a minha lentidão. OK, mas foi muito educativo manter juros de BNDES por um ano, não? 

Mas agora acabou a moleza, tenho que correr atrás, e já tenho contratada essa encrenca quem quer que seja o meu chefe”.  *Ex-presidente do Banco Central e sócio da Rio Bravo Investimentos.

domingo, 26 de dezembro de 2021

Gustavo Franco: Esperança na incerteza.

https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,esperanca-na-incerteza,70003935282


Gustavo H. B. Franco, O Estado de S. Paulo

26 de dezembro de 2021 | 05h00

Há uma velha sabedoria de mercado, longamente confirmada pela experiência, segundo a qual todo consenso de mercado sobre o futuro é sempre antecipado, de tal sorte a produzir efeitos imediatos e trazer para o presente o que já se toma como certo para frente.

O futuro está no preço, é o bordão que expressa essa sabedoria.

Pois disso se segue que tudo de ruim que se diz que vai acontecer em 2022, por conta dos radicalismos e incertezas sobre a economia, já está acontecendo. 

Portanto, o pior de 2022 é o que estamos experimentando ainda em 2021, bem antes do fato, e mesmo sem a certeza de que vai ser assim mesmo.

Talvez o caminho daqui a outubro seja de convergência e entendimento, pois afinal o Brasil não vai se desmanchar. Ou vai? 

Quase sempre, o futuro que se tomava como certo não chega a existir. 

Muitos futuros idealizados só vão existir no terreno do pretérito mas, assim mesmo, produzem efeitos, primeiro quando a onda se forma, quando não se sabe se é bolha ou boato e, a seguir, quando a opção retorna ao pó. 

Certo mesmo é que as certezas pessimistas sobre o futuro podem não se confirmar. Como, aliás, é comum com as outras certezas sobre o futuro.

Nessa época do ano, e no terreno específico das expectativas sobre a economia, há grande demanda por profecia e por otimismo. Desde sempre a Humanidade manda cartas para Papai Noel e se debruça sobre os oráculos.

Mas, em geral, se admite que o otimismo é para os fracos, e sobretudo para os desinformados. Por isso quem escreve as cartas são as crianças...

E assim, a fim da afastar suspeitas de fraqueza ou desinformação, é sempre prudente profetizar um ano difícil, cheio de volatilidade e de momentos críticos e decisões provavelmente erradas, do que se segue a recomendação, que já foi mais incontroversa, de apertar os cintos.

Andar sem cinto, no carro ou no avião, é um risco desnecessário e tolo, além de interferir na segurança do alheio, assunto que se apresentou diversas vezes em 2021, a propósito da vacina, contrariando vários prognósticos otimistas sobre o avanço da civilização no Brasil.

Bem, mas o que há de diferente nesse fim de ano de 2021?

Há um consenso avassalador que 2022 será uma guerra, pois a polarização política está infernal, e deve apenas se intensificar até as eleições de outubro de 2022.

Com isso, os cintos já estão apertados até o último buraquinho, mal dá para respirar, e assim o que esperávamos para 2022 já está acontecendo.

Para ser otimista, portanto, é preciso apelar para a incerteza: o que realmente vai acontecer em 2022, felizmente, não se tem a menor ideia.

domingo, 28 de novembro de 2021

Gustavo Franco: O Orçamento público e a democracia.

Gustavo Franco*, O Estado de S.Paulo

28 de novembro de 2021 | 04h00

O Orçamento é o coração da democracia. 

Na verdade, pensando bem, acho que é o estômago, ou o fígado.

É onde desejos e possibilidades se encontram, e onde se decide a diferença entre eles, que passa a se chamar “dívida pública”, a fórmula universal de tributação dos ausentes, nossos filhos e netos. 

O Orçamento é onde se fabricam as linguiças, de que falava o chanceler Otto Bismark a propósito do Legislativo¹.

Democracias adultas possuem processos orçamentários maduros, nos quais os senhores parlamentares, e seus respectivos partidos, discutem prioridades nacionais e competem por recursos escassos de forma transparente. 

Nas democracias adolescentes os políticos não competem por recursos escassos, pois preferem colaborar para negar a existência de escassez de recursos fiscais e, de preferência, no escurinho. É o nosso negacionismo fiscal, doença tropical em crônica mutação, driblando vários tipos de tratamento.

O orçamento deveria ser o locus do combate ao negacionismo e do debate sobre “de-onde-vem” e “para-onde-vai” o dinheiro público.

É razoável que os senhores parlamentares, e os partidos, queiram elevar sua influência sobre o Orçamento, que costumava vir pronto do Executivo, e é compreensível que o façam de um jeito meio paroquial. É assim em qualquer parlamento do mundo, todos os eleitos sempre prometem trazer dinheiro para suas comunidades. 

Há muitos vícios no nosso processo orçamentário, mas temos preferido deixar o assunto de lado para concentrar energias em outros grandes subtemas da política fiscal: as reformas previdenciária, administrativa e tributária e, mais recentemente, o teto de gastos. 

Em retrospecto, talvez tenha sido um grande erro assumir que o orçamento era apenas um rito, uma espécie de plano de contas que não tinha importância maior, em si.

O orçamento público é o ponto de contato entre a cidadania e os Poderes que mandam no dinheiro público. É como se fosse um farol iluminando a intervenção do Estado no domínio econômico, ou o funcionamento da fábrica de linguiças.

Havendo clareza sobre “de-onde-vem” e “para-onde-vai” o dinheiro público, o debate sobre as reformas de teor fiscal teria ficado, talvez, muito mais fácil e transparente. A conversa obre a economia teria ficado mais adulta. 

1 - Há muitas versões, uma delas é dorme-se melhor quando não se sabe como se fazem linguiças e política (Franco & Giambiagi, Antologia da Maldade (Rio, Editora Zahar, 2015, p.43)

* EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA RIO BRAVO INVESTIMENTOS. ESCREVE NO ÚLTIMO DOMINGO DO MÊS 


domingo, 31 de outubro de 2021

Gustavo Franco no Estadão: O teto dos gastos e o precipício.

https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,o-teto-de-gastos-e-o-precipicio,70003885407


Gustavo H.B. Franco*, O Estado de S.Paulo

31 de outubro de 2021 | 05h00

Sempre se soube que o teto de gastos (conforme definido na Emenda Constitucional n.º 95 – EC95 de 2016) era uma solução imperfeita e temporária para o problema fiscal brasileiro, e que se destinava principalmente a ganhar tempo para reformas que pudessem consolidar o equilíbrio fiscal.

Era uma espécie de congelamento, pelo qual os gastos do governo, por 20 anos, permaneceriam onde estavam em 2016 e cresceriam nos anos a seguir apenas no ritmo da inflação. Era uma resposta emergencial ao furacão fiscal provocado por Dilma Rousseff

Durante alguns anos, o teto não restringiria coisa alguma, pois os gastos orçados iam demorar a chegar no teto, que funcionaria como um precipício, ou uma cerca eletrificada, dos quais não se podia chegar muito perto. 

O teto em si, esclareça-se, não fazia encolher um único e solitário real da despesa, nem afetava outras obrigações constitucionais.

O princípio era simples: o medo do precipício, ou do choque, criaria os incentivos para as reformas acontecerem. 

Mas quem falou que o Brasil tem medo de choques e precipícios?

Por um lado, em vez de temor, nossos homens públicos se embriagaram com a vertigem, ou com a proximidade do perigo, e, por outro, o “prazo de validade” foi abreviado por dois fatores: 

(i)    a reforma da Previdência atrasou, e acabou passando menor do que se previa; e 

(ii)    a pandemia trouxe muitas novas necessidades de gasto.

Em condições normais, pareceria mais adulto colocar a pandemia fora do teto, tratando-a como uma calamidade totalmente estranha à rotina orçamentária: como uma despesa extraordinária que se financia por dívida pública (para isso serve a dívida pública) e por receitas igualmente extraordinárias (como, por exemplo, as de privatização, destinadas a reduzir a dívida pública).

Mas não é tão simples, o panorama orçamentário brasileiro é desolador e o debate sobre o valor e o alcance dos auxílios emergenciais serve de exemplo dessa complexidade. O leitor pode se perguntar: onde está a fronteira entre as urgências criadas pela pandemia e as que já existiam?

Não há uma resposta técnica para essa pergunta. 

O próprio ex-presidente Michel Temer, em um artigo recente, ilustrou essa dificuldade ao levar “às últimas consequências” a sua definição de calamidade para nela enquadrar “o pauperismo brasileiro”. 

Se o próprio pai do teto quer colocar o Auxílio Brasil fora do teto, que dizer dos filhos? 

*EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA RIO BRAVO INVESTIMENTOS. ESCREVE NO ÚLTIMO DOMINGO DO MÊS

domingo, 26 de julho de 2020

Gustavo Franco: Milagre de marketing.

Gustavo H.B. Franco*, O Estado de S.Paulo
26 de julho de 2020 | 08h07

Carl Sagan não acredita em milagres, a julgar pelo relato que se segue:
“Em 1858, uma aparição da Virgem Maria foi relatada em Lourdes, França, e desde então centenas de milhões de pessoas desenganadas têm ido a Lourdes na esperança de serem curadas. A Igreja rejeitou a autenticidade de um grande número de pretensas curas milagrosas, mas aceitou apenas 65, em quase um século e meio. A taxa de regressão espontânea em todos os cânceres é estimada entre 1 em 10 mil e 1 em 100 mil. Se apenas 5% dos que vão a Lourdes ali estivessem para tratar de seus cânceres, deveria haver entre 50 e 500 curas milagrosas só de câncer. Como apenas 3 dos 65 casos autenticados são de câncer, a taxa de regressão espontânea em Lourdes parece ser inferior à que existiria se as vítimas tivessem simplesmente ficado em casa.”



domingo, 28 de junho de 2020

ESTADÃO: Gustavo Franco em "Liberalismo e pandemia".

https://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,liberalismo-e-pandemia,70003346977

Os adversários do liberalismo econômico, à direita e principalmente à esquerda, são de três tipos: 

Há os que dizem que o liberalismo, o neoliberalismo e a teoria econômica convencional estão todos obsoletos, já mortos, ainda mais agora com a pandemia. 

Há os que dizem que o liberalismo econômico é hegemônico no Brasil e, por isso, precisa ser abandonado, uma vez que a economia brasileira está estagnada desde os anos 1980. 

E há os que dizem as duas coisas. 

Sobre os do tipo número dois, me ocorre um comentário a esse respeito do próprio Roberto Campos, feito nos idos de 2000, quando afirmou que, até aquele momento, o liberalismo ainda não havia sido tentado no Brasil. 

Campos deixou esse mundo em 2001. 

Pois bem, depois disso o PT fez dois presidentes que foram reeleitos, e os dois outros presidentes a seguir, colegas improváveis de Campos da 50.ª legislatura (entre 1991 e 1994), Michel Temer e Jair Bolsonaro, nada tinham de liberais. 

É verdade que o Brasil está estagnado desde os anos 1980, mas muito provavelmente isso tem a ver com deficiência de liberalismo, e não com hegemonia. 

Sobre os que dizem que o liberalismo e o saber convencional em economia estão mortos, seria bom lembrar que uma das piores consequências do politicamente correto, à esquerda e à direita, era desvalorizar a “expertise”. 

A internet, como se sabe, cada vez mais funciona como uma espécie de memória auxiliar do cérebro humano: o que você não sabe, pode ser encontrado no Google ou na Wikipedia, em segundos, basta teclar no seu celular. Com esses auxílios, qualquer um se torna um especialista ou, pior, um apoquentador de especialistas: subitamente, a expertise não apenas não vale mais nada como atacá-la virou uma demonstração de independência e desprendimento. Os novos idiotas da objetividade são os cretinos da internet, Nelson Rodrigues e Humberto Eco estariam rigorosamente na mesma página nesse assunto. 

A ciência devia nos guiar, sobretudo quando a noite cai, mas, em vez disso, nesse clima de rede social sem controle há tempos que se ouve que a ciência é apenas uma narrativa, uma de muitas, e que todas são legítimas, todas estão presentes na internet, ao alcance dos dedos, e que vai prevalecer a que tiver mais clicadas. 

Sou um otimista, acho que vai ser o contrário, a pandemia vai sumir com essa cretinice de que a ciência é apenas uma narrativa. Tomara que seja também o caso da medicina alternativa em economia, que possui uma vertente milagreira de viés contábil, crescentemente presente em Brasília, com o auxílio da qual sempre se pode encontrar algum tesouro escondido (amiúde no balanço do Banco Central) que vai pagar todas as contas da pandemia, ou algum truque contábil que vai fazer sumir as dívidas do Estado. 

É claro que são truques ordinários, como o que fazia desaparecer o déficit da Previdência com uma reclassificação contábil, e que nada se resolve desse jeito. Mas os políticos adoram. Perde-se tempo precioso com isso, remédios milagrosos, cloroquina contábil. 

O fato é que a urgência sanitária vai elevar o gasto e a dívida pública a níveis impensáveis em 2020. Depois de muito esforço, nesse ano íamos fazer um déficit de uns R$ 100 bilhões, e estávamos na beira do precipício da sustentabilidade fiscal. Pelo que se fala no Congresso, o déficit vai para perto de um trilhão, e a dívida pública vai chegar em 100% do PIB. 

Como será o funcionamento do governo federal nessas condições? Será parecido com o que se vê em alguns Estados quebrados? Atrasos e calotes todo o tempo? Como nos países que lutaram na Segunda Guerra durante muitos anos depois do término do conflito? 

As democracias liberais não deixam de ser democracias, nem deixam de ser liberais, quando lutam guerras. Democracias adultas pagam as suas contas e sabem de onde vem o dinheiro. A pandemia não pode servir de pretexto para ressuscitar a feitiçaria econômica. 

EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA RIO BRAVO INVESTIMENTOS. ESCREVE NO ÚLTIMO DOMINGO DO MÊS


domingo, 31 de maio de 2020

Estadão - Gustavo Franco: 80 dias de corona.


Hoje, 31 de maio, domingo em que se comemora Pentecostes, passados 50 dias da Páscoa, faz exatos 80 dias da declaração pela qual a OMS definiu como pandemia o surto da doença causada pelo novo coronavírus (covid-19). 

Parece pouquíssimo tempo quando se tem em conta as voltas que o mundo deu, evocando comparações, em vista do que ainda temos pela frente, com o assassinato do arquiduque em 1914 e a invasão da Polônia em 1939.

Entretanto, esta primeira fase da pandemia parece interminável, sobretudo para quem está em confinamento, vivendo dias que passam em angustiante lentidão, noites em claro e tardes caindo como viadutos (saudações, mestre Aldir Blanc).

O sofrimento parece ampliar a sensação do tempo, daí a compreensível ansiedade em iniciar uma “segunda fase” da pandemia, mesmo sem ter tocado nenhuma sirene assinalando o fim do bombardeio, e mesmo que os especialistas não estejam de acordo sobre os novos protocolos.

Vamos adotar um “novo normal”, que não se sabe bem como é, mas gradualmente, experimentando cada novo procedimento, um de cada vez, conforme o estágio da epidemia, e de acordo com o lugar e com a atividade. E sempre com a opção de recuar na presença de uma nova onda, mas tomara que não seja necessário.

Só se sabe que o lockdown não pode ser mantido indefinida e indiscriminadamente.

Já parecia haver acordo que a “segunda fase” da epidemia seria mesmo confusa num país heterogêneo e desigual como o nosso, habitualmente descrito como a Belíndia, no qual a porção belga teria melhores capacidades, relativamente à outra, para lidar com o isolamento social.

Não obstante, a heterogeneidade nos comportamentos dos Estados brasileiros diante da epidemia superou qualquer expectativa quanto à existência de vários Brasis. 

É impressionante o contraste, a julgar pelo número de mortos por milhão de habitantes entre os Estados do Sul: RS (7,62), SC (8,14) e PR (8,77), relativamente à região Norte: AM (178) e PA (45). O contraste também é marcante com relação ao Sudeste (SP: 65,8 e RJ: 69,4) e alguns Estados do Nordeste (PE: 83,5 e CE: 92,3), mas não todos (RN: 20,4 e BA:10,4). 

Um Estado que tem a cara do Brasil, pela extensão territorial e diversidade, como MG, exibe um número particularmente baixo: 4,56. 

O que há em Minas que não se encontra noutros Estados? 

É claro que os determinantes desses comportamentos regionais diversificados têm algo a ensinar sobre a dinâmica do contágio, e sobre o desenho de estratégias locais de desconfinamento.

Há muito a entender sobre a relação entre a velocidade de contágio e sua métrica já bem conhecida, o “R-zero”, e fatores geográficos, demográficos e socioeconômicos, as características das cidades e particularmente suas redes de transporte público e mobilidade, bem como as políticas adotadas por diferentes autoridades locais.

As soluções não precisam estar em países distantes, mas, às vezes, em um município vizinho.

Como as situações regionais são diferentes, inclusive pelo fato de a epidemia estar em diferentes estágios, faz todo sentido que o tratamento seja descentralizado, como de fato se passa na administração da Saúde no Brasil, aliás, em obediência à Constituição (Art. 23 ii) que define a saúde como “competência comum” de União, Estados e municípios.

As palavras-chave aqui são consenso, coordenação, transparência e governança, conceitos bem conhecidos de muitos gestores públicos (mas não todos!) e, particularmente, críticos num quadro de emergência sanitária.

Municípios, condomínios, assim como países, podem tropeçar de forma nada menos que bizarra se suas lideranças não souberem trabalhar a coesão social, sem a qual há muitos perigos em atividades simples, como andar de elevador e atravessar a rua.

EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA RIO BRAVO INVESTIMENTOS. ESCREVE NO ÚLTIMO DOMINGO DO MÊS 

domingo, 26 de abril de 2020

Gustavo Franco no ESTADÃO - Economia: 45 dias de corona.

Gustavo H.B. Franco, O Estado de S.Paulo
26 de abril de 2020 | 04h00

Com um mês e meio do início oficial da pandemia (a declaração da Organização Mundial da Saúde é de 11 de março), o estrago sobre a economia é imenso e, pior, não está completo. 

As primeiras projeções para o crescimento do PIB em 2020 começaram a aparecer, o aspecto é péssimo, mesmo considerando as dosagens elevadas de pudor e genuína contrição nesses primeiros esforços.

Estamos falando de quedas superiores a 5% para 2020, mas, na hipótese otimista e irreal, que no segundo semestre de 2020 voltaremos à “normalidade pré-corona”, o que nem mesmo a Militância Bolsonarista da Terceira Idade de Taubaté acredita que vá acontecer. 

Na verdade, se os números do segundo semestre forem afetados por alguma restrição espontânea de mobilidade e consumo, o que é bem provável, a conta para o PIB em 2020 vai ficar mais próxima de uma queda de dois dígitos. 

A mesma dinâmica se observa para o resto do mundo, para o qual a projeção do FMI é de 3% de queda, mas na improvável hipótese de uma recuperação forte no segundo semestre.

Terrível.

Além de terrível, pode-se certamente acrescentar “inesperado” e talvez um “imerecido”. Mas não vale discutir, nem tem muita importância mesmo, pois é o que temos para hoje e o que vale, para a política, é o que os advogados designam como “responsabilidade objetiva”, ou, na linguagem do Conselheiro Acácio, a responsabilidade é do responsável independentemente de culpa ou merecimento. Vai para a conta da liderança.

De acordo com um velho teorema que aprendi em Brasília, e de aplicação global, é muito difícil a liderança política se aguentar (na próxima eleição) com a economia naufragando desse jeito, independentemente de culpa e dolo. 

Isso é mais ou menos como dizer que nenhum tripulante graduado do Titanic tem muita chance de ser popular junto aos passageiros e seus familiares. Fica ainda mais difícil quando houver gente morrendo sem conseguir entrar nas UTIs, sobretudo na periferia da Belíndia. Por ora, vamos lembrar, a “curva” brasileira reflete a evolução na nossa população belga, daqui para frente, no entanto, vai ser como na Índia.

Claro que um ou outro líder pode destoar: Boris Johnson, por exemplo, ao ficar doente, experimentou o equivalente à facada de Bolsonaro durante a eleição, e vai sair da crise melhor que a média, assim como Jair Bolsonaro, por conta da “gripezinha”, entre outras malcriações e maus exemplos, vai sair pior, muito pior.

Sendo assim, e considerando que o fenômeno é global, o prognóstico é ruim para os políticos no poder, de modo que, provavelmente, vamos ter o encerramento desses populismos de quinta categoria ocorrendo em vários países, incluindo este aqui onde estamos. A ver.

Há algo de perverso, todavia, nessas más notícias do PIB saindo justamente no ápice do debate sobre a transição do confinamento geral para algo diferente, cujos protocolos estão ainda em discussão. A sofreguidão com as consequências políticas de um PIB muito ruim pode enviesar a decisão para uma abertura muito grande ou muito rápida, o que pode custar vidas e levar à volta de medidas mais restritivas no segundo semestre do ano, arruinando de vez o PIB de 2020.

Tudo isso não obstante, o presidente, neste mês e no meio da pandemia, deu duas demonstrações de desapreço à autonomia dos órgãos de Estado que lidam com a Saúde e com a Polícia, e que resultaram nas demissões dos ministros Mandetta e Moro.

É natural que o mercado financeiro volte a flertar um terceiro pavor que seria o desapreço à autonomia dos órgãos de Estado que lidam com a Economia e a possível substituição do ministro Paulo Guedes por “alguém mais afinado”, e “que possa interagir” com o presidente. Essa possibilidade precisaria ser afastada o mais rápido possível: o presidente teve 40 minutos em cadeia nacional para fazê-lo, mas, quando não falou de Sérgio Moro, tratou de aquecimento da piscina.

Por tudo isso, o ministro Guedes precisa ficar maior, e a turma do gabinete do ódio precisa ficar menor. Não existe outra receita para baixar a temperatura dessa crise.

* EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA RIO BRAVO INVESTIMENTOS. ESCREVE NO ÚLTIMO DOMINGO DO MÊS 

https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,economia-45-dias-de-corona,70003282903

domingo, 29 de março de 2020

Gustavo Franco: O Corona e a economia.


Esta crise reúne as piores características de todas as anteriores: a insegurança que veio com o 09-11, a ansiedade com o HIV, o impacto econômico sistêmico de 2008, tudo isso junto com a turbulência financeira, que foi a tônica das crises dos anos 1990. Mas há singularidade.
Esta crise não nos traz um problema cambial, o que não quer dizer que não vai ter agitação nesse mercado, sempre tem, e pode ser que tenha mais, mas o câmbio não é um tema importante dessa vez.
A inflação está prostrada numa mínima histórica e, com isso, o país entra na crise com os juros a 3,75%, o que muda todo o protocolo, sobretudo numa crise na qual o crédito é o primeiro problema a enfrentar. Ainda bem que fizemos o dever de casa no passado, contrariamente à opinião da medicina econômica alternativa.
Pois bem, o custo do endividamento, público e privado, vai ser muito menor do que em qualquer outro episódio de estresse financeiro do passado. Mas é preciso que a liquidez chegue a quem precisa, trabalho para o BC monitorar os bancos, sobretudo os analógicos (os digitais nunca passaram por isso, e poderão ajudar muito, pois sua “agência” é o seu celular, onde não tem aglomeração).

domingo, 23 de fevereiro de 2020

No Estadão de 23/02/2020 o artigo de Gustavo Franco: Regina Duarte.


O presidente tem muitos ministros briguentos (ele mesmo não é diferente), que não ajudam, o da Educação está balançando, ele tem muita afinidade com o presidente, mas não dá para afrontar a meteorologia. Mas não se trata do que o presidente realmente é, ou genuinamente acredita e gosta, mas do que pratica diante de condições meteorológicas complexas. O presidente precisa ser de todos os brasileiros e, se for assim, a economia vai responder.

domingo, 29 de maio de 2016

Gustavo Franco: "Precisamos falar sobre herança."


Neste domingo de outono brasileiro, Gustavo Franco é mais uma vez preciso e didático ao evidenciar a situação atual da economia brasileira. 

Segundo ele, "E não por acidente as quedas no PIB do biênio 2015 e 2016, que se espera que atinjam 3,8% e 3,8%, ultrapassam o que se observou nos anos da Grande Depressão, 1930-31, quando as quedas foram de 2,1% e 3,3%. É fundamental que se tenha clara a exata natureza e extensão da herança, para que as dores inerentes ao árduo trabalho de reconstrução financeira e fiscal do crédito público sejam associadas a quem produziu a doença, e não ao médico."

Um texto para ler e reler.

domingo, 10 de abril de 2016

Sem otimismo com a queda da inflação em março/2016.

Com o cenário econômico em tempos de péssimas notícias, é razoável a euforia que o IPCA registrou avanço de "apenas" 0,43% em março de 2016, resultando numa acumulação de 9,39% em 12 meses, inferior portanto aos 10,36% observados em fevereiro. Isso lembrando que 2015 fechou com uma inflação de 10,67% e que a meta para 2016 continua sendo 4,5% ao ano. Logo, estamos realmente muito longe da meta.

Como citado por João Sayad em 1987, "a inflação é um animal burro". E com burros, não devemos brincar...

Também, em meados de 2004, Gustavo Franco profeticamente escreveu em um dos textos do livro Economia Brasileira Contemporânea, "o desenvolvimento econômico brasileiro, para ser justo e saudável, precisa ter lugar sob responsabilidade fiscal e moeda sadia". Suspeito que a mente brilhante do nobre colega nem imaginasse que no Brasil de 2016 estaríamos num contexto pavoroso. 

O país necessita que os números da economia mostrem, com urgência urgentíssima, o enorme potencial de crescimento brasileiro, sob pena de sofrimento e dor para toda a sociedade. É extremamente lamentável que após uma queda de 3,8% no PIB em 2015, estejamos prevendo outra queda de 3,8% para 2016 e, quem sabe, um PIB de insignificante 0,3% para 2017. Realmente, assim não dá!!!  

Quem viver, verá!   

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Antologia da Maldade: Gustavo Franco e Fabio Giambiagi.

Aproveitando os feriados deste final de ano, recomendo a leitura do ótimo "Antologia da Maldade - Um dicionário de citações, associações ilícitas e ligações perigosas", livro organizado pelos economistas Gustavo Franco e Fabio Giambiagi

Uma leitura para fazer bem a mente e a alma! 


domingo, 29 de novembro de 2015

Gustavo Franco: a fórmula da corrupção.

O colega Gustavo Franco, extremamente cáustico hoje no ESTADÃO, definitivamente explica o que está acontecendo no Brasil. 
Num livro de 1988, o professor Robert Klitgaard, de Harvard, definiu o grande problema nacional em uma simples equação:
Corrupção = Monopólio + Arbitrariedade – Transparência.
Ou seja, quanto mais distantes do mercado estiverem as relações entre o público e o privado, quanto mais discricionárias as decisões, e quanto menor a transparência, maior será a corrupção.

domingo, 2 de março de 2014

Ambição real.

Editorial da FOLHA DE S. PAULO e os 20 anos do Plano Real.

O aniversário de 20 anos da medida provisória 434/1994, que instituiu a URV (Unidade Real de Valor) e preparou o caminho para o lançamento do real, decerto merece celebração.

Não pela nostalgia de um momento de grandes mudanças, quando os artífices do Plano Real demonstraram singular visão de Estado --destaque-se, além do então presidente Itamar Franco e seu ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, os economistas André Lara Resende, Edmar Bacha, Gustavo Franco e Pérsio Arida.

A lembrança é válida pela constatação de que, mesmo em meio às dificuldades daqueles dias, o governo construiu consensos e obteve legitimidade para um salto de qualidade nas instituições. Há, portanto, lições para o Brasil de hoje.

Sem a estabilização da moeda não teriam sido possíveis os avanços posteriores, como o alargamento dos direitos sociais e a redução da desigualdade. O fim da inflação galopante, em si, foi o primeiro passo para isso, pois eram os mais pobres os mais prejudicados.

Houve erros graves, como os desequilíbrios que fizeram o Brasil recorrer ao FMI em 1998. Mas mudanças de monta na condução da economia deram ao país uma estabilidade havia tempo esquecida.

Depois, o presidente Lula construiu sobre esses alicerces, criando um grande mercado interno de massas. Manteve, especialmente no primeiro mandato, a aderência aos pilares macroeconômicos e acelerou a inclusão social.

O bom momento mundial catalisou as ações internas, e o Brasil registrou crescimento acelerado. Foram criados mais de 15 milhões de empregos entre 2003 e 2010.

Nos últimos anos, porém, cessaram as propostas ambiciosas. A administração Dilma Rousseff, em especial, abusou do modelo de consumo, sem enxergar a necessidade de novas estratégias à luz das transformações globais e da baixa produtividade interna.

Reformas em áreas como Previdência e tributação, fundamentais para o equilíbrio das contas públicas e recuperação da capacidade de investimento do Estado, permanecem paralisadas enquanto as autoridades de turno vendem a ilusão de que tudo vai muito bem.

O ex-presidente Fernando Henrique tem razão quando fala da natural fadiga que acomete grupos políticos instalados por muito tempo no poder --regra que vale para todos os partidos, em todos os níveis da Federação.

Fundamental, nesse sentido, oxigenar o debate --não necessariamente com novos mandatários, mas sem dúvida com novas ideias.


Forças governistas e seus opositores poderiam se inspirar nos exemplos do passado. Pouco importam, no fundo, discussões sobre o mérito do que já desbota no tempo; o país demanda uma visão de futuro. O ano é propício.

domingo, 30 de junho de 2013

Gustavo Franco: E o real foi para as ruas...

Leio no ESTADÃO o mestre Gustavo Franco e a relação ruas x R$.

O real se tornou a moeda nacional há 19 anos, quando a inflação beirava 50% mensais, mas não havia ninguém nas ruas. Durante os 15 anos anteriores, quando a inflação acumulou 20.759.903.275.651% (vinte trilhões e troco), o brasileiro produziu grandes manifestações em raras ocasiões: para pedir eleições diretas, e depois para derrubar o primeiro presidente que elegeu nesse formato. A hiperinflação, a maior desgraça econômica que o País já viveu (exceto pela escravidão), não chegou a produzir mais que episódios isolados, seu efeito mais marcante e paradoxal foi o torpor.

Como foi possível que uma monstruosidade econômica desta grandeza não pusesse o País submerso em protestos e passeatas?

Talvez nunca seja possível responder com precisão. A hiperinflação foi um fenômeno gigantesco e incompreensível, inclusive por que faltava clareza quanto ao autor. Não havia uma causa, pois se dizia que a inflação de hoje era a de ontem, portanto, de "natureza inercial", e não tínhamos responsável. Contra quem protestar?

Na verdade, a própria inflação era o protesto, pois a experiência de quem viveu aqueles dias sombrios era sempre a do repasse, ou de "correr atrás" para recuperar poder de compra que se derretia. O custo de vida se elevava 1% ou 2% ao dia, era preciso passar adiante os aumentos, pois era um Tsunami, uma reação em cadeia, um conflito distributivo que nos impunha um comportamento nefasto, pois buscava-se "correr à frente" do processo, e assim nos tornávamos cúmplices do vício, ainda que em legítima defesa.

Conforme observou Elias Canetti, numa passagem famosa do livro Massa e Poder, a hiperinflação pode ser tomada como "um sabá de desvalorização no qual homens e unidade monetária confundem-se da maneira mais estranha. Um representa o outro; o homem sente-se tão mal quanto o dinheiro, que segue cada vez pior; juntos, todos se encontram à mercê desse dinheiro ruim e, juntos, sentem-se igualmente desprovidos de valor".

A hiperinflação era, portanto, um fenômeno depressivo, um exercício cotidiano de queimar a própria bandeira, uma destruição de valores de forma ampla, o suicídio de um símbolo nacional, uma ferida ética. O sentimento de culpa talvez explique, em parte ao menos, o desinteresse na busca de responsáveis. A vilania jamais era associada aos líderes políticos que ordenaram a gastança, as pirâmides e estádios, as transposições, as emendas orçamentárias e a generosidade nos bancos oficiais. Nenhum desses farsantes jamais defendeu a inflação diretamente: apenas atacavam quem queria combater a inflação a sério, os miseráveis neoliberais ortodoxos a serviço do FMI e da globalização.

A imprensa jamais conseguiu produzir um rosto, um vilão, quando muito um ministro que naufragou com um plano de estabilização, e o Ministério Público nunca conseguiu processar ninguém por produzir inflação. Nenhuma CPI funcionou com esses termos de referência. Foi o crime perfeito.

Pois agora, passados 19 anos, ao invés de festejar a monotonia da estabilidade, a ocasião serve para o registro que muitos desses personagens estão de volta. Parece novamente recomposta a mesma coalizão inflacionária da "Nova República", movida pelo "tudo pelo social", ou pela promessa de inclusão social, ou de conquistas, a qualquer custo, e também por projetos megalomaníacos e pela descrença em limites fiscais, tudo isso resultando em um "hiperinflacionamento de desejos" no orçamento ou nos bancos oficiais, bem além das possibilidades dadas pela disposição da sociedade em pagar impostos.

Esta é a matriz da hiperinflação, cujo desenrolar invariavelmente compreende a descoberta da capacidade de administrar "politicamente" a realização de desejos incorporando seletivamente grupos beneficiados na coalizão governista numa espécie de clientelismo de massa. Em seguida, para que o processo ganhe escala, é preciso capturar o Banco Central, a fim de adquirir o controle sobre o crédito e sobre a fabricação de papel pintado, mágica que pode ser compartilhada com os Estados, cada qual com o seu banco emissor e sem limites quanto à capacidade de se endividar.

Agora, todavia, esses canais monetários e creditícios estão bloqueados, embora com alguns vazamentos. A inconsistência entre o inflacionismo da política fiscal e as barreiras institucionais à inflação, notadamente na forma das metas de inflação e dos impedimentos ao endividamento dos Estados (Lei de Responsabilidade Fiscal e outros acordos de reestruturação de dívidas), nunca foi tão aguda, parecendo configurar um quadro de inflação reprimida. O sistema político se vê pressionado a fazer escolhas, as tensões vão se multiplicando, e também o intervencionismo, pois o Estado tenciona ser maior que a Sociedade.

Diante dessas limitações, o governo precisa racionar a realização dos desejos que inflou, e para tanto parece ter criado uma espécie de feira de favorecimentos e seletividades, fiscais e regulatórias, guiadas por idiossincrasias, amizades, preferências e por clientelismo. A Casa prevalece sobre a Rua, como diria Roberto da Matta, não há impessoalidade nos atos da administração, tudo tem o seu destinatário, aos amigos tudo, aos outros a horizontalidade do mercado e a hostilidade dos reguladores. Instala-se o primado da malandragem, o investimento em lobby toma o lugar daqueles que se destinam à produção e à competitividade, o país do futebol se torna propriedade dos cartolas e a Rua se levanta.

Soa familiar? Não é parecido com as reclamações que se ouve nas ruas?

É surpreendente e alvissareiro que a sociedade exiba uma capacidade antes inexistente de perceber a vilania dos velhos mecanismos de socialização dos custos de estádios de futebol ou do apoio aos "campeões nacionais". A imprensa não tem dificuldade em identificar os enredos e beneficiários, bem como as fórmulas de ocultação e os truques contábeis e manipulações. A irritação se torna cotidiana e crescente. Ninguém quer pagar as contas que não lhe pertencem, as escolhas do governo são equivocadas e provocam indignação: se há dinheiro para o Itaquerão e para o trem-bala, como as escolas, hospitais e ônibus podem ser tão ruins?

O "sistema político" tem muitos defeitos, mas o problema aqui tem muito mais que ver com a liderança e há uma eleição logo à frente. No mundo plano da globalização e das redes sociais, seria normal que a aversão a esse pseudo-capitalismo de quadrilhas trouxesse para o centro da política o desejo de horizontalidade, transparência, responsabilidade fiscal, probidade, meritocracia e impessoalidade nas regras do jogo econômico. Era disso que se tratava o Plano Real, sobretudo no seu capítulo sobre reformas. Mas o que estamos vendo nos últimos anos é muito diferente. É compreensível a irritação dessa maioria silenciosa com a epidemia de "seletividade", privilégio e compadrio, que se sabe serem o berço da corrupção. Surpreendente mesmo não é o protesto e seus temas, mas o timing e a faísca que o determinou.


sábado, 1 de junho de 2013

Brasil rico é um Brasil sem inflação.

Nesta parte de um artigo do Gustavo Franco, o poder da palavra certa escrita de maneira inteligente. Desconheço a data em que ele escreveu este artigo, mas continua tão atual, como somente assim são os autores que ficam na história.     

Na economia, o charlatanismo é mais flagrante por que há interesses envolvidos. Seria, de fato, extraordinário que a inflação brasileira fosse “puramente inercial”, há muita gente que acredita nisso, tal como os que acreditam que foram abduzidos por discos voadores. Uma pesquisa de 1992 indica que cerca de 2% da população americana genuinamente acredita ter sido abduzida por alienígenas, ou seja, cerca de 3,7 milhões de terráqueos, só nos EUA.

É tão absurdo como pensar que uma das maiores inflações que a humanidade conheceu, e que acumulou 20,7 trilhões por cento em 15 anos, teria acontecido por nenhuma razão, por que a inflação de hoje é a de ontem, e se “apagarmos” o “ontem”, ela desaparece, como por mágica.

O fato é que a crença na “inflação inercial” atua como uma poderosa influência no sentido de barrar os esforços para moralizar as contas públicas brasileiras, onde, com efeito, as maiores atrocidades acontecem. Há um enorme público para essa ladainha da “inércia”, ou para o efeito sem causa, pois ela serve para preservar a irresponsabilidade fiscal, mãe da corrupção e outras criaturas aparentadas, e os interesses a elas relacionados.


A importância de debater o PIB nas eleições 2022.

Desde o início deste 2022 percebemos um ano complicado tanto na área econômica como na política. Temos um ano com eleições para presidente, ...