Leio no ESTADÃO o mestre Gustavo Franco e a relação ruas x R$.
O
real se tornou a moeda nacional há 19 anos, quando a inflação beirava 50%
mensais, mas não havia ninguém nas ruas. Durante os 15 anos anteriores, quando
a inflação acumulou 20.759.903.275.651% (vinte trilhões e troco), o brasileiro
produziu grandes manifestações em raras ocasiões: para pedir eleições diretas,
e depois para derrubar o primeiro presidente que elegeu nesse formato. A
hiperinflação, a maior desgraça econômica que o País já viveu (exceto pela
escravidão), não chegou a produzir mais que episódios isolados, seu efeito mais
marcante e paradoxal foi o torpor.
Como
foi possível que uma monstruosidade econômica desta grandeza não pusesse o País
submerso em protestos e passeatas?
Talvez
nunca seja possível responder com precisão. A hiperinflação foi um fenômeno
gigantesco e incompreensível, inclusive por que faltava clareza quanto ao
autor. Não havia uma causa, pois se dizia que a inflação de hoje era a de
ontem, portanto, de "natureza inercial", e não tínhamos responsável.
Contra quem protestar?
Na
verdade, a própria inflação era o protesto, pois a experiência de quem viveu
aqueles dias sombrios era sempre a do repasse, ou de "correr atrás"
para recuperar poder de compra que se derretia. O custo de vida se elevava 1%
ou 2% ao dia, era preciso passar adiante os aumentos, pois era um Tsunami, uma
reação em cadeia, um conflito distributivo que nos impunha um comportamento
nefasto, pois buscava-se "correr à frente" do processo, e assim nos
tornávamos cúmplices do vício, ainda que em legítima defesa.
Conforme
observou Elias Canetti, numa passagem famosa do livro Massa e Poder, a
hiperinflação pode ser tomada como "um sabá de desvalorização no qual
homens e unidade monetária confundem-se da maneira mais estranha. Um representa
o outro; o homem sente-se tão mal quanto o dinheiro, que segue cada vez pior;
juntos, todos se encontram à mercê desse dinheiro ruim e, juntos, sentem-se
igualmente desprovidos de valor".
A
hiperinflação era, portanto, um fenômeno depressivo, um exercício cotidiano de
queimar a própria bandeira, uma destruição de valores de forma ampla, o
suicídio de um símbolo nacional, uma ferida ética. O sentimento de culpa talvez
explique, em parte ao menos, o desinteresse na busca de responsáveis. A vilania
jamais era associada aos líderes políticos que ordenaram a gastança, as
pirâmides e estádios, as transposições, as emendas orçamentárias e a
generosidade nos bancos oficiais. Nenhum desses farsantes jamais defendeu a
inflação diretamente: apenas atacavam quem queria combater a inflação a sério,
os miseráveis neoliberais ortodoxos a serviço do FMI e da globalização.
A
imprensa jamais conseguiu produzir um rosto, um vilão, quando muito um ministro
que naufragou com um plano de estabilização, e o Ministério Público nunca
conseguiu processar ninguém por produzir inflação. Nenhuma CPI funcionou com
esses termos de referência. Foi o crime perfeito.
Pois
agora, passados 19 anos, ao invés de festejar a monotonia da estabilidade, a
ocasião serve para o registro que muitos desses personagens estão de volta. Parece
novamente recomposta a mesma coalizão inflacionária da "Nova
República", movida pelo "tudo pelo social", ou pela promessa de
inclusão social, ou de conquistas, a qualquer custo, e também por projetos
megalomaníacos e pela descrença em limites fiscais, tudo isso resultando em um
"hiperinflacionamento de desejos" no orçamento ou nos bancos
oficiais, bem além das possibilidades dadas pela disposição da sociedade em
pagar impostos.
Esta
é a matriz da hiperinflação, cujo desenrolar invariavelmente compreende a
descoberta da capacidade de administrar "politicamente" a realização
de desejos incorporando seletivamente grupos beneficiados na coalizão
governista numa espécie de clientelismo de massa. Em seguida, para que o
processo ganhe escala, é preciso capturar o Banco Central, a fim de adquirir o
controle sobre o crédito e sobre a fabricação de papel pintado, mágica que pode
ser compartilhada com os Estados, cada qual com o seu banco emissor e sem
limites quanto à capacidade de se endividar.
Agora,
todavia, esses canais monetários e creditícios estão bloqueados, embora com
alguns vazamentos. A inconsistência entre o inflacionismo da política fiscal e
as barreiras institucionais à inflação, notadamente na forma das metas de
inflação e dos impedimentos ao endividamento dos Estados (Lei de
Responsabilidade Fiscal e outros acordos de reestruturação de dívidas), nunca
foi tão aguda, parecendo configurar um quadro de inflação reprimida. O sistema
político se vê pressionado a fazer escolhas, as tensões vão se multiplicando, e
também o intervencionismo, pois o Estado tenciona ser maior que a Sociedade.
Diante
dessas limitações, o governo precisa racionar a realização dos desejos que
inflou, e para tanto parece ter criado uma espécie de feira de favorecimentos e
seletividades, fiscais e regulatórias, guiadas por idiossincrasias, amizades,
preferências e por clientelismo. A Casa prevalece sobre a Rua, como diria
Roberto da Matta, não há impessoalidade nos atos da administração, tudo tem o
seu destinatário, aos amigos tudo, aos outros a horizontalidade do mercado e a
hostilidade dos reguladores. Instala-se o primado da malandragem, o
investimento em lobby toma o lugar daqueles que se destinam à produção e à
competitividade, o país do futebol se torna propriedade dos cartolas e a Rua se
levanta.
Soa
familiar? Não é parecido com as reclamações que se ouve nas ruas?
É
surpreendente e alvissareiro que a sociedade exiba uma capacidade antes
inexistente de perceber a vilania dos velhos mecanismos de socialização dos
custos de estádios de futebol ou do apoio aos "campeões nacionais". A
imprensa não tem dificuldade em identificar os enredos e beneficiários, bem
como as fórmulas de ocultação e os truques contábeis e manipulações. A
irritação se torna cotidiana e crescente. Ninguém quer pagar as contas que não
lhe pertencem, as escolhas do governo são equivocadas e provocam indignação: se
há dinheiro para o Itaquerão e para o trem-bala, como as escolas, hospitais e
ônibus podem ser tão ruins?
O
"sistema político" tem muitos defeitos, mas o problema aqui tem muito
mais que ver com a liderança e há uma eleição logo à frente. No mundo plano da
globalização e das redes sociais, seria normal que a aversão a esse
pseudo-capitalismo de quadrilhas trouxesse para o centro da política o desejo
de horizontalidade, transparência, responsabilidade fiscal, probidade,
meritocracia e impessoalidade nas regras do jogo econômico. Era disso que se
tratava o Plano Real, sobretudo no seu capítulo sobre reformas. Mas o que
estamos vendo nos últimos anos é muito diferente. É compreensível a irritação
dessa maioria silenciosa com a epidemia de "seletividade", privilégio
e compadrio, que se sabe serem o berço da corrupção. Surpreendente mesmo não é
o protesto e seus temas, mas o timing e a faísca que o determinou.