No VALOR de hoje, uma aula de economia com o professor Delfim Netto.
Idealmente, numa sociedade com sólidas instituições,
em que o Estado é constitucionalmente constrangido a regular, de preferência, a
atividade produtiva através da organização de mercados competitivos, que
garantam a plena liberdade de escolha individual do emprego e do consumo, a
política econômica objetiva dois equilíbrios dinâmicos: o interno e o externo.
O equilíbrio interno tenta atingir o nível da
atividade econômica que esgota o fator de produção não transacionável mais
escasso. Esse nível depende: 1) do consumo privado, influenciado pelo salário
real, pela expectativa de emprego e pelo crédito; 2) do investimento privado,
que depende da própria expectativa sobre o nível futuro da atividade, da taxa
de juros real e do crédito; 3) das despesas discricionárias do governo no seu
consumo, no processo redistributivo e no seu investimento; 4) das exportações,
que dependem do nível da demanda externa, da produtividade da economia e,
positivamente, da taxa de câmbio real; e 5) das importações necessárias para
complementar o consumo, a produção e os investimentos, que dependem do nível da
própria atividade e, negativamente, da taxa de câmbio real.
O equilíbrio interno exige, adicionalmente, que ele
se realize com uma taxa de inflação relativamente estável e parecida com a dos
competidores no mercado internacional.
Finalmente, o equilíbrio externo significa que
eventuais déficits em conta corrente devem ser confortavelmente financiáveis e
relativamente imunes aos aleatórios movimentos de capitais, que são induzidos
pelos diferenciais das taxas de juros reais internas e externas.
Como, no mundo real, se realizam tais equilíbrios?
Para os economistas da metodologia do "suponhamos que", é simples.
Suponhamos: 1) um governo verdadeiramente crente na "eficiência dos
mercados" e que dá a todos quantos existirem, as condições necessárias
para a sua plena flexibilidade (de forma que sempre estarão em equilíbrio); 2)
que o trabalho é uma mercadoria como qualquer outra e que o salário é
determinado num mercado igual ao dos parafusos, que aceitam qualquer rosca, não
têm preferências e, principalmente, não votam; 3) que o governo obedeça às
restrições orçamentárias e conhece o nível da atividade possível; e 4) que o
Banco Central controle a taxa de juros real para manter a oferta global igual à
demanda global (para obter a taxa de inflação desejada). Suponhamos,
finalmente; 5) que a taxa de câmbio real flutuante mantenha o saldo em conta
corrente administrável. Com mercados completos (onipresentes) e oniscientes, o
sistema estaria sempre em equilíbrio no nível máximo da atividade.
O grande número de variáveis a serem controladas
levou a uma divisão do trabalho entre as autoridades fiscal e monetária, da
qual resultou a famosa política econômica canônica resumida no tripé: 1)
política fiscal anticíclica (o que mostra que o sistema tem flutuações ínsitas)
com superávits primários que levem a dívida pública bruta/PIB a dar espaço para
o aumento de gastos do governo quando necessário; 2) meta de inflação
estabelecida pelo poder político, que autoriza o banco central autônomo a fixar
a taxa de juro real que estabiliza a expectativa da inflação no nível da meta;
e 3) câmbio real com flutuação relativamente suja para reduzir a volatilidade
sem pretender fixar o seu nível.
Há, seguramente, alguns problemas com o modelo
derivado da organização do mercado de trabalho, porque ele nega, de fato, a
possibilidade do desemprego e lhe faltam preocupações que reduzam a tendência
dos mercados à concentração da renda e estimulem o aumento da igualdade de
oportunidades, fundamentais para a estabilidade social.
Há mais. Não há nenhuma razão para supor que a taxa
de juro real que estabiliza a inflação interna seja compatível com a taxa de
câmbio real que mantém o nível da atividade interna. Se o diferencial entre as
taxas de juros reais interna e externa estimular a absorção de poupança externa
isso levará à valorização da taxa cambial, à destruição da produção interna e,
eventualmente, a problemas com o financiamento do balanço em conta corrente.
O exemplo brasileiro é claro. O combate à crise de
2008 levou a medidas que estimularam o aumento do salário nominal muito acima
dos aumentos da produtividade e da própria taxa de inflação e a uma valorização
oportunística do câmbio nominal para combater a inflação. Como consequência, o
câmbio real, que é igual à relação câmbio nominal/salário nominal, sofreu até
recentemente uma dramática valorização.
O resultado disso foi uma queda do nosso saldo
comercial (a despeito do aumento das relações de troca), de um nível de US$ 25
bilhões na média de 2008-12, para qualquer coisa como US$ 5 bilhões em 2013. A
tabela abaixo dá a soma das contas do balanço de conta corrente de 2008 a 2013
(em US$ bilhões). No período, o investimento direto estrangeiro superou o
déficit em conta corrente em US$ 10 bilhões.
Não é possível aceitar um déficit em conta corrente
de quase US$ 300 bilhões em seis anos, e de quase US$ 80 bilhões em 2013, como
"natural", apesar dele ser 3,5% do PIB. Aqui o número conta. As
condições do mundo estão mudando e o financiamento pode ficar bem mais difícil.
É isso que o ajuste endógeno da taxa de câmbio está sinalizando.