Mais um brilhante texto do presidente Fernando Henrique, hoje, no Estadão e no blog do Augusto Nunes na VEJA.
Saí
do Brasil depois que as manifestações populares provocaram um tsunami na
avaliação dos principais dirigentes políticos. Na Europa o noticiário repercute
a recidiva da crise egípcia, a volta da incerteza na Tunísia, a continuidade
trágica da guerra civil síria, os atentados sem fim no Paquistão e no
Afeganistão, enfim, uma rotina de tragédias preanunciadas que, vistas de longe,
parecem “coisas do Terceiro Mundo”. Enquanto isso, a China vai encolhendo sua
economia, os EUA confiam na recuperação e a Europa se contorce em ajustes sem
fim. Do Brasil ecoam apenas os passos do papa, por vezes tocando o solo
lamacento dos ermos para onde o levaram em sua pregação.
De
nossas aflições financeiras os mercados externos só eventualmente tratam, mas
delas sempre se cuidam, retirando suas aplicações ao primeiro sinal de alarme.
Do desabamento político poucas referências há. Embora nenhuma crise de
legitimidade tenha sido o gatilho do torvelinho popular, este terminou por
mostrar que existe algo parecido com ela. Se de nossa política a mídia
ocidental cuidasse, talvez visse que nem só na África e no Oriente Médio há um
desencontro entre o poder e o povo. Há algo que não está funcionando direito na
política, mesmo nas partes mais longínquas do Ocidente, como a América do Sul.
Há um elo nesse desarranjo: as sociedades urbanas de massas, agora
hiperconectadas pela internet, sentem-se mal representadas pelos que as
comandam. Isso vale tanto para nós como para a Itália, a Espanha, a Grécia ou
Portugal, assim como valeu para a Islândia ou pode vir a valer para outras
regiões onde, além da crise de legitimidade política, choques culturais e
religiosos acrescentem outra crise à de identidade.
Em
nosso caso, como nos demais países ocidentais, o fator geral mais evidente que
condiciona e possibilita o surgimento do mal-estar político deriva da grande
crise financeira de 2007/8. Mas seria enganoso pensar que basta retomar o ritmo
do crescimento da economia e tudo se arranja. É melhor ter cautela e reconhecer
que, uma vez visto o rei nu, sua magia se desfaz ou engana menos incautos. As
novas formas de sociabilidade criadas pelos meios diretos de informação e
comunicação estão a requerer revisão profunda no modo de fazer política e nas
instituições em que o poder se exerce. A desconfiança nos partidos e nos
políticos é generalizada, embora não atinja o mesmo grau em todos os países,
nem as instituições desabem ou sejam incapazes de se aprimorar. Até agora os
efeitos construtivos da pressão popular sobre as instituições ─ salvo na
Islândia ─ estão por se ver. Mas basta haver eleições para que os governos (de
esquerda, de direita ou o que mais sejam) caiam, como cairia o nosso se as
eleições fossem em breve.
A
questão é complexa e há responsáveis políticos, em maior ou menor grau. Para
começar, o governo Lula zombou da crise, era uma “marolinha”, e seguiu
funcionando, fagueiro, como se nada precisasse ser feito para ajustar o rumo.
Houve, portanto, uma avaliação errada da conjuntura. Mas houve outras
barbeiragens. O lulopetismo, arrogante, colocou a lanterna na popa do barco e,
rumando para o passado, retomou as políticas dos tempos militares geiselianos
como se avançasse intrépido para o futuro. Tome subsídios para pobres e ricos,
mais para estes que para aqueles, mais sem razão ao ajudar os ricos mais que os
pobres. Perceberam tarde que o cobertor era curto, faltaria dinheiro. Se há
problemas, tome maquiagem: o Tesouro se endivida, pega emprestado dinheiro no
mercado, repassa-o ao BNDES, que fornece os mesmos recursos aos empresários
amigos do rei. Toma-se dinheiro a, digamos, 10% e se concede a 5%. Quem paga a
farra: eu, você, os contribuintes todos e os consumidores, pois algo dessa
mágica desemboca em inflação.
A
maquiagem fiscal já não engana: mesmo o governo dizendo que sua dívida líquida
não aumenta, quem sabe ler balanços vê que a dívida bruta aumenta e os que
investem ou emprestam, nacionais ou estrangeiros, aprenderam muito bem a ler as
contas. Deixam de acreditar no governo. Mais ainda quando observam sua
ginástica para fingir que é austero e mantém o superávit primário.
Não
é só. Em vez de preparar o Brasil para um futuro mais eficiente e decente, com
regras claras e competitivas que incentivassem a produtividade, o “modelo”
retrocedeu ao clientelismo, ao protecionismo governamental e à ingerência crescente
do poder político na vida das pessoas e das empresas. E não apenas graças a
características pessoais da presidenta: a visão petista descrê da sociedade
civil, atrela-a ao governo e ao partido, e transforma o Estado na mola
exclusiva da economia. Pior e inevitável, a corrupção, independentemente dos
desejos de quem esteja no ápice, vem junto. Tal sistema não é novo, foi coroado
lá atrás, ainda no primeiro mandato de Lula, quando se armou o mensalão. Também
neste caso há responsáveis políticos e nem todos estão na lista dos condenados
pelo Supremo.
Com
ou sem consciência de seus erros, o petismo é responsável por muito do que aí
está. Não por acaso seu líder supremo, depois de longo silêncio, ao falar foi
claro: identificou-se com as instituições que as ruas criticam e, como
Macunaíma, aconselhou a presidenta a fazer oposição a si mesma, como se governo
não fosse…
Se
as oposições pretenderem sobreviver ao cataclismo, a hora é agora. O Brasil
quer e precisa mudar. Chegou o momento de as vozes oposicionistas se
comprometerem com um novo estilo de política e de assim procederem. Escutando e
interpretando o significado do protesto popular. Sendo diretas e sinceras.
Basta de corrupção e de falsas manias de grandeza. Enfrentemos o essencial da
vida cotidiana, dos transportes à saúde, à educação e à segurança, não para
prometer o milagre da solução imediata, mas a transparência das contas, das
dificuldades e dos propósitos.
E
não nos enganemos mais: ou nos capacitamos para participar e concorrer num
mundo global áspero e em crise ou nos condenaremos à irrelevância.