segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Pérsio Arida na FOLHA: existe um pacto antiliberal entre elites e governo.


Hoje, na FOLHA DE S. PAULO, a excelente entrevista que a Eleonora de Lucena fez com o economista PERSIO ARIDA. Uma longa conversa que vale o tempo da nossa leitura, uma vez que vai da situação do Brasil a um panorama da economia mundial. .

O Brasil foi o último país a ter escravidão. Foi o último a ter hiperinflação e tem um regime de remuneração do FGTS que prejudica os trabalhadores. Demorou muito para criar a Comissão da Verdade para apurar crimes da ditadura. Por detrás desses fatos está um pacto antiliberal formado entre elites e governo.

A análise é do economista Persio Arida, 59, um dos idealizadores do Plano Real, que enxerga um denominador comum entre escravidão, hiperinflação e FGTS: "os mais prejudicados são os mais pobres, sempre".

Ex-presidente do Banco Central e hoje sócio do banco BTG Pactual, ele avalia que o primeiro ano do governo Dilma Rousseff foi bem-sucedido do ponto de vista macroeconômico. "É um governo mais austero", declara. Mas diz não gostar do que define como "uma tendência protecionista", revelada do caso do aumento do IPI para os automóveis importados. "Se está protegendo um grupo de multinacionais contra outro grupo de multinacionais", afirma.

Arida ataca também o novo reajuste do salário mínimo que, para ele, não distribui renda nem dinamiza a economia e vai "na contramão de tudo que o país precisa".

Ex-presidente do BNDES, ele discorda da atual política da instituição de fortalecer os chamados "campeões nacionais", os grandes grupos. Na sua visão, "quem tem acesso ao mercado de capitais privado não deveria usar recursos do BNDES".

Arida prevê uma trajetória de recuperação para os Estados Unidos e acha que a desaceleração suave na China não vai ter impacto dramático para o Brasil. O maior problema, para ele, está na Europa e no seu sistema bancário. Lá países podem sair do euro isoladamente ou a situação pode ser empurrada com a barriga. Há também possibilidade de nacionalização de bancos.

"Há que salvar os bancos", defende, lembrando que o grande drama da recessão de 1929 foi a quebra dos bancos. "Não se pode repetir os erros de 29", alerta.

Folha: Qual avaliação do governo Dilma?
Persio Arida: O governo Dilma teve o desafio de enfrentar o legado de uma economia excessivamente aquecida em 2009/2010. Optou por fazer um "soft landing", baixando ao mínimo a inflação, para evitar que uma desinflação muito rápida sacrificasse por demais o nível de emprego. O resultado de 2010 foi bom nesse sentido do "soft landing". A inflação reverteu a trajetória de alta, embora ainda esteja no topo da banda. A atividade econômica está desacelerando para a taxa de crescimento brasileira de longo prazo, que é algo entre 3,5% e 4%. Desse ponto de vista, o desafio macroeconômico, que era como lidar com o aquecimento excessivo de 2010, foi bem resolvido para esse ano de 2011.

Não foi um erro ter segurado a economia em demasia no início do ano passado; agora o governo quer estimulá-la novamente. O desaquecimento tem mais a ver com essas medidas do que com a crise no exterior, certo?
O desaquecimento é primordialmente ditado pelas medidas; é um desaquecimento intencional e necessário e foi numa boa medida. A economia brasileira não cresce a taxas de 2010 _são insustentáveis.

Por quê?
Porque é muito acima da taxa de crescimento normal, leva a sobreaquecimento, pressão inflacionária excessiva, gargalos de infraestrutura, falta de poupança doméstica. Há inúmeros fatores que fazem com que a economia não possa crescer a 7% ao ano de forma sustentada.

Então o normal é um crescimento baixo?
O crescimento é o que é. Na economia brasileira hoje a taxa sustentável de crescimento é algo em torno de 3,5%, 4%. Sustentável no sentido de capaz de manter a inflação sob controle e evitar gargalos maiores nos processos de infraestrutura. Para crescer mais do que isso, se precisaria ou ter mais poupança doméstica ou ter mais poupança externa. Mais poupança externa não seria prudente, pois já estamos com déficit de conta-corrente. Para ter mais poupança doméstica teriam que ser feitas reformas estruturais que não vejo sendo encaminhadas no momento. Do ponto de vista macroeconômico foi um ano muito bem sucedido. Essa desaceleração recente da economia brasileira no último trimestre é um pouco enganosa; a economia vai acelerar de novo este ano, ao longo do ano. Acho que 2012, se não houver um percalço maior lá fora, teremos de novo uma taxa de crescimento de 3,5%, 4%.

E inflação, câmbio, juros?
A inflação deve seguir com a tendência moderada de queda. Câmbio é a variável mais difícil de imaginar. É a variável mais suscetível a eventos externos. Depende muito do que acontecer no resto do mundo.

A economia norte-americana está em trajetória de recuperação, o que tende a fortalecer o dólar. Se não houver uma mudança política muito radical nos EUA, a recuperação vai continuar. A política de juro zero com "quantitative easing" norte-americana vai ser suficiente para, ao longo do tempo, fazer com que os EUA voltem à trajetória de crescimento de longo prazo. A China tem outra trajetória de "soft landing", que acho que também vai ser bem-sucedida. Sou mais otimista, acho que a China vai crescer perto de 8,5% neste ano, o que para a China é um "soft landing". O grande desafio é a Europa. É a grande incerteza que tem no cenário.

Como este "soft landing" da China vai afetar o Brasil, já que a ligação entre as economias é muito grande?
Menos do que as pessoas pensam. Porque o "sotf landing" chinês não implica nenhuma redução abrupta da demanda de matérias-primas brasileiras. Tem muito mais a ver com a transformação da China de uma economia primordialmente exportadora para uma economia voltada para o mercado doméstico. A China, por razões de demografia e do próprio desenvolvimento, não consegue mais sustentar taxas de crescimento de 10%, 11% sem pressão inflacionária. Os salários na China estão claramente subindo. A China, que foi uma força deflacionária para o mundo, hoje está deixando de sê-la. A desaceleração da China é consequência do próprio crescimento, primordialmente do mundo e dela em especial. Mas é uma desaceleração relativamente suave, acho que não vai ter impacto dramático nenhum.

Sobre EUA, alguns acham os dados recentes pouco conclusivos para assegurar uma recuperação.
O problema norte-americano é muito parecido com o problema japonês. Acontece quando se tem bolhas imobiliárias e bancos se tornam inviáveis por problema de crédito. O problema dos bancos nos EUA foi em crédito. Foi uma gigantesca bolha de crédito, como no Japão. A pergunta que geralmente se faz é: uma vez que você entra numa bolha de crédito e a bolha explode, se tem um período recessivo prolongado necessariamente ou se consegue encurtar o período recessivo com políticas monetária e fiscal, principalmente monetária? Dependendo de como se responde, se vê o futuro dos EUA. As políticas de juro zero e um agressivo "quantitative easing" do BC norte-americano vão abreviar o período, digamos, recessivo. Em 2013, 2014 vai começar a haver uma certa reversão da política monetária norte-americana. Sou muito mais otimista com os EUA.

E o emprego vai se recuperar?
No emprego a recuperação é mais lenta porque os setores que voltam não são os setores que desempregaram. Setores onde o desemprego tende a ser maciço, o financeiro e o "real state", não são os setores que se beneficiam na volta. Tem um aspecto estrutural no desemprego, porque é difícil para as pessoas mudarem de trabalho, mudar de ramo. Mas vai ser caudatário do processo. Se houver uma recuperação econômica sustentável, mais cedo ou mais tarde o emprego se recupera também. O grande desafio do mundo está na Europa.

E o que vai acontecer por lá? Qual a origem da crise?
Como em toda a crise, é tentador achar uma única origem. Mas é um fenômeno muito complexo. O euro foi uma construção, antes de mais nada, política, não econômica. É um projeto de, via unificação monetária e através da zona do euro, via unificação tarifária, permitindo livre migração, se criar um cimento econômico entre países que evitasse a repetição das tragédias do século 20, as duas Grandes Guerras. Como projeto político é um extraordinário sucesso. A ideia de integrar economicamente e de forma quase mais próxima da irreversibilidade para evitar as tensões políticas que levaram às guerras e conflitos, se demonstrou uma proposição política correta. Como proposição política é um projeto muito bem sucedido, ao contrário do que as pessoas imaginam. A questão é que para fazer sentido economicamente teria que ter sido acompanhada de medidas que não ocorreram.

Quais são os desafios? Primeiro, o federativo. Desafios federativos são muito difíceis de lidar. O Brasil tem uma questão federativa, mas ela não existe politicamente. Exemplos simples: há transferências maciças de renda entre regiões do Brasil, de uma região para outra, entre Estados do Brasil. A regra um homem/um voto não vale no Brasil, porque um votante num Estado vale mais do que de outro. No debate político brasileiro, esses desequilíbrios federativos não fazem parte da agenda. O país, por razões de história, de cultura etc tem convido bem com isso. Mas poderia não conviver. Num país abstrato, a questão da regra de um homem/um voto e a magnitude das transferências de renda seriam um conflito federativo monumental. Só que o país não existe em abstrato, existe numa história. E na nossa trajetória histórica isso não tem importância politicamente. No Brasil, a cidadania não de define localmente, ao contrário do que ocorre na Europa.

Na Europa, a questão federativa, que no Brasil é oculta, é aparente e visível desde a partida. Porque os países continuam independentes e não existe um mecanismo coercitivo entre eles. Não há um mecanismo de ajuda sistemática entre países. Até hoje os vários bancos centrais têm contabilidades internas entre eles etc. Essa questão federativa é uma dimensão muito complexa no problema europeu.
Porque o problema não é o mesmo nos vários Estados. Há países que sempre foram menos responsáveis fiscalmente do que outros. Há uma dimensão fiscal/federativa. Há uma dimensão de balanço de pagamentos entre países que sistematicamente conseguiram lidar bem com a apreciação da moeda conjunta do euro, enquanto outros lidaram mal. E há problemas de condução do processo. A resistência alemã no caso da Grécia é desastrosa. Se você insiste em que haja perdas para os credores de determinado país, como você imagina que seja a reação dos credores do país vizinho? A Europa enfrenta uma crise que é, antes de mais nada, de governança interna.

Se aquilo fosse um país, a Europa teria estatísticas melhores do que os norte-americanos. Teria menos dívida e menos déficit. É uma abstração --aquilo não é um país, mas é preciso ter isso em vista. O problema é federativo, que está desde a partida e nunca foi resolvido. O problema confluiu quando houve a explosão da bolha por razões completamente díspares. A Irlanda era um país com dívida pública muito baixa, que tem uma trajetória fiscal invejável, que se tornou um país problematizado por conta de seus bancos. Na outra ponta, a Grécia sempre teve uma trajetória fiscal reprovada por toda a União Européia, mas que de alguma forma a União Européia permitiu...

E os bancos também, porque emprestaram...
E os bancos também porque emprestaram. Irlanda e Grécia são dois extremos. Como um todo, na Europa hoje há um problema bancário.

Qual é a dimensão bancária do problema?
É muito difícil fazer essa conta porque o teste de estresse que o Banco Central Europeu rodou ficou muito desmoralizado. Fizeram o teste e logo em seguida o Dexia... Falhou. Então não é uma boa medida. Por outro lado, os requerimentos de Basiléia, que seriam uma outra medida, têm uma dificuldade. Se pode calcular assim: para cumprir os requisitos de Basiléia, quanto os bancos deveriam ter de capital. Essa é uma medida que se entende. O que o mercado normalmente olha é quanto os bancos precisam levantar de dinheiro para se financiar. O que é uma medida torta do problema. O problema é a insuficiência de capital. A questão é que lidar com uma crise soberana e uma crise bancária ao mesmo tempo é um problema de extraordinária complexidade. Porque as duas crises são ligadas.

Vamos ter como exemplo um título italiano de dez anos que está hoje vendido a 7%, digamos. Um título do governo italiano, naturalmente, é um título que qualquer banco italiano tem como mais líquido, como em qualquer lugar do mundo. Se você perguntar qual o título mais líquido dos bancos brasileiros, a resposta será: os títulos do governo brasileiro. Se você obriga no teste de estresse que haja um requerimento de capital suficiente a fazer face a um "default" soberano dificilmente os bancos vão conseguir levantar o dinheiro.

Vão ter que ser socorridos pelos Estados.
Ou estatizados.

E o sr. enxerga essa estatização acontecendo de forma mais forte?
A estatização de bancos é sempre o último recurso. Mas é melhor estatizar os bancos do que deixar os bancos quebrarem.

Mas é um cenário possível na Europa, uma onda de estatização bancária?
É difícil imaginar... É muito fácil e tentador traçar cenários, e muito difícil, ao mesmo tempo, traçá-los. Você pode traçara cenários da Europa dissolvendo coletivamente o euro, todos os países saem ao mesmo tempo...

E volta o dracma, a lira, o marco...
Volta o dracma. Tem artigo recente do Robert Barro que sugere uma URV para dissolver o euro.

Um plano Larida [elaborado por André Lara Resende e Persio Arida, que resultou no Plano Real]?
Um plano Larida para dissolver o euro. Seria um Larida para outro propósito. Você tem perspectivas de países saírem do euro isoladamente. Você tem perspectiva de nacionalização de bancos. Você tem perspectiva de empurrar com a barriga por mais um tempo.

O Estado do bem-estar social vai ser desmontado? Há os que dizem que as causas da crise da dívida soberana estão no socorro a bancos, no regime tributário regressivo e houve uma redução da arrecadação de impostos.
A questão do Estado do bem-estar na Europa é pouco entendida. Vou dar um exemplo. A França tem três vezes mais funcionários públicos per capita do que a Alemanha. Nada consta de que o Estado de bem-estar social seja muito pior na Alemanha do que na França. Outro dado. Se você tem seguro-desemprego muito generoso, como é o caso da Espanha, é contraproducente, porque torna o desemprego mais rígido. Um país com seguro-desemprego generoso de mais não é melhor do ponto de vista do bem-estar do que um país com seguro-desemprego menos generoso. Por detrás da discussão de Estado de bem-estar ou não tem uma questão de eficiência do Estado.

Faz parte do pacto social europeu um certo Estado de bem-estar que foi maior do que o norte-americano. A história tem que ser respeitada. Isso sempre foi assim e provavelmente sempre será assim. O que está em jogo não é uma americanização da Europa. Não vejo isso acontecendo. O que está em jogo é uma modernização do Estado de bem-estar. Tem que dar mais eficiência, tornar os seguros-desempregos menores.

É o dinheiro da saúde e da educação que está sendo cortado, da Grã-Bretanha à Grécia.
Tem aspectos aí. A Inglaterra tem um sistema de saúde socializado. Funciona surpreendentemente bem para um sistema de saúde público. Mas você tem que racionalizar o tempo todo. A despesa de saúde, se não tiver racionalização, vai ao infinito. Para você acertar um diagnóstico, com 90% de chance, é relativamente barato. Se você quiser acertar um diagnóstico com 99% de chance, o custo sobe exponencialmente.

Em saúde pública você sempre tem que ter um cálculo econômico de custo e benefício. É triste falar assim, quando se fala de vidas humanas, mas, se não, o sistema não tem limite. Não acho que vá haver na Europa o fim do Estado de bem-estar. Você vai ter uma enorme racionalização do Estado de bem-estar.

Outro exemplo. Morei muitos anos na Inglaterra. A Inglaterra já não permite o tratamento de fertilidade em mulheres obesas. A mulher é forçada a emagrecer antes, por causa do risco de perder o bebê. Evidentemente, se a mulher está numa idade mais crítica do ponto de vista da fertilidade, ela pode legitimamente argumentar que não vai dar tempo, que precisa fazer. Outros países da Europa permitem. São decisões difíceis, mas há um enorme espaço na Europa para racionalização do Estado de bem-estar. Isso é muito diferente da americanização, que não faz parte da cultura e da história européia.

Mas as medidas contra a crise não estão na direção errada ao sufocar os gastos públicos e reduzir a renda. Não deveria ser feito o contrário, como aumento de salários?
Vai ter uma política fiscal mais apertada, demissão de funcionários públicos, redução de gastos do Estado, racionalização do Estado do bem-estar. Mas precisa ter medida na coisas. Não se pode pedir para um país fazer um ajuste de menos 4 para 4 positivo do PIB. Vai gerar uma crise no tecido social que torna o país ingovernável. Precisa ter limites no processo, bom-senso. Mas fazer o ajuste fiscal em si no momento de crise é até bom, porque a sociedade toma consciência da necessidade do ajuste.

A questão é junto com o ajuste fiscal fazer uma política monetária muito mais flexível. A Europa poderia expandir o balanço do BC europeu, idealmente, muito mais do que faz hoje. Em outras palavras, uma impressão de moeda, taxa de juros zero e uma emissão monetária muito mais radical, mais acentuada do que tem sido feito até agora. Falo a mesma coisa nos dois contextos [Brasil e mundo]. O mundo precisa ir na direção de políticas fiscais mais contracionistas e políticas monetárias mais expansionistas.

E aumentar salário? O salário não é uma parte importante na dinâmica capitalista?
Não se deve aumentar salário. O salário tem um elemento cíclico. A economia capitalista tem ciclos. Quando está na fase alta o salário aumenta sozinho. Na fase baixa, ele tem uma enorme resistência. Ele fica e acaba tendo desemprego. O salário não é um preço flexível, digamos. Salário funciona um pouco diferente dos demais preços. Por conta disso, não é preciso estimulo para fazer aumentos salariais para melhorar a vida das pessoas. A melhor maneira de aquecer uma economia nas condições atuais da Europa, dos EUA e do próprio Brasil, com as devidas adaptações, é sempre política monetária.

O sr. não concorda com a análise que aponta no socorro a bancos, na regressividade do sistema tributário e na corte dos impostos para os ricos como causas da crise da dívida soberana? A salvação dos bancos não tem a ver com essa crise da dívida soberana?
Obviamente tem. Toda a crise bancária sistêmica associada a bolhas ou de ativos ou no mercado imobiliário ou no mercado acionário tipicamente põe os governos diante de uma situação difícil. Se pode permitir que os bancos quebrem, o que é um trauma extraordinário para a formação de poupança ao longo do tempo. Ou salvar os bancos. E para salvar os bancos, ou o governo injeta dinheiro ou absorve parte do portfólio podre dos bancos. É sempre melhor a segunda solução do que a primeira. O grande drama da grande recessão, não foi a queda da bolsa de 1929 ou o folclore de alguém que se jogou pela janela. O drama foi a quebra dos bancos. Foi a quebra dos bancos que provocou o trauma e a perda de confiança no padrão fiduciário. Não pode repetir os erros de 1929. Se pode dizer que não deviam ter deixado a situação ter chegado àquele ponto. Isso é uma questão política e que outros governantes sejam eleitos. Uma vez que se está diante da situação, há que salvar os bancos.

Se pode salvar os bancos de inúmeras formas diferentes. Penalizando os acionistas dos bancos, que é a forma correta, nem sempre adotada na Europa. Sempre o primeiro a ser penalizado tem que ser o acionista do banco. Mas salvar bancos, não penalizar o credor dos bancos. Penalizar o acionista e não penalizar o credor.

Mas mesmo que se tire todo o capital do acionista, numa crise bancária de grandes proporções não dá para salvar o credor. Se precisa colocar mais dinheiro. Então são crises que levam ao aumento da dívida pública. É uma certa transferência, de um excesso de endividamento privado, para um gradual excesso de endividamento público.

É a socialização das perdas.
É uma socialização de perdas, por assim dizer. O termo é meio enganoso. Porque a grande socialização de perdas é uma questão de gerações. O governo tem duas alternativas: pode deixar todos os bancos quebrarem e aí ele socializa todas as perdas hoje. Porque o depositante, o trabalhador que tem dinheiro no banco perde a sua poupança, zera. Ou ele pode aumentar a dívida pública, com o que ele socializa a dívida entre a geração atual e as futuras. A dúvida não e socializar a perda ou não: ela vai haver de qualquer forma. É se quem paga é só a geração atual ou se de alguma forma divide o peso do pagamento entre as gerações atual e as futuras. Quando se divide o peso, se aumenta a dívida pública, porque alguém vai ter que pagar isso em algum momento para frente. Não necessariamente o trabalhador de hoje, mas o trabalhador do futuro.

O capitalismo assim fica sem riscos?
Não, o capitalismo tem riscos.

Sim, mas se alguma coisa sai errada, o Estado vai lá e ajuda, não é?
Tem dois aspectos aí. A legislação brasileira é melhor do que a demais. A legislação brasileira é baseada no princípio de que a responsabilidade do controlador e do estatutário é ilimitada. Esse é o princípio correto, porque mesmo se o governo tiver que socorrer o banco, a sociedade tem uma garantia de que o administrador do banco e o acionista do banco perdem tudo. E se for o acionista perde não só as ações do banco como todos os seus bens.

A legislação norte-americana foi criada sobre outro pressuposto. Esse debate houve nos EUA, se devia ter responsabilidade ilimitada ou não. Os EUA optaram pela responsabilidade limitada dos dirigentes, sob o argumento de que se a responsabilidade fosse ilimitada seria tão arriscado que só aventureiros topariam ter instituições financeiras. Isso nos anos 1920.

Então para tornar o sistema financeiro mais sólido optou-se pela responsabilidade limitada.

Mas essa discussão não ressurgiu agora com essas manifestações de rua?
Curiosamente não. Existe um mal-estar público contra o que aconteceu nos bancos, mas ele é difuso, não se transladou para uma proposta. O debate nos EUA sobre bancos não é sobre se deveria introduzir a regra brasileira ou não. O debate é politizado, busca aumentar o controle, reforçar a margem de segurança dos bancos. Mas ninguém fala em tornar a responsabilidade ilimitada. O sistema brasileiro é muito mais avançado.

Qual o significado do rebaixamento de países europeus definido na última sexta-feira?
O rebaixamento era esperado, não há surpresa. As agências erraram muito nas avaliações de risco em 2008. No crédito provado erraram muito, falharam. Para investidores institucionais criou-se uma cultura pela qual os investimentos são feitos de acordo com o "rating" das agências _ o que é conveniente para os administradores dos fundos. Essa cultura não mudou apesar dos erros das agências. Por isso, há consequências no rebaixamento, mas não há nada surpreendente.

A crise vai resultar num maior controle das finanças globais? O sistema financeiro vai passar por alguma redução? Muitos dizem que os governos ficaram submetidos aos seus desejos das finanças. O que o sr. acha?
Há clichês de todo o tipo. Esse é um clichê, que existe um sistema financeiro globalizado.

Não existe isso?
Em bom português é bobagem. Você tem um mundo crescentemente globalizado, com integração financeira, comercial, tem uma difusão cultural maior. E os grandes beneficiários da globalização foram os pobres. Foi a globalização que permitiu a ascensão dos emergentes. A integração de comércio e financeira é extremamente benéfica aos pobres do mundo. Do ponto de vista das políticas nacionais, ela coloca um problema, porque os Estados se percebem cada vez mais interdependentes. Há uma certa ilusão. Na Grande Depressão havia um grau de interdependência similar. Criou-se a percepção de que são mais interdependentes hoje do que anteriormente, o que é até duvidoso. Mas há, de fato, laços de comércio crescentes, grau de interdependência comercial entre países crescente, fluxos de capitais crescentes, fluxos financeiros crescentes.

Quais são os desafios que isso coloca na esfera nacional? Primeiro, o mais óbvio, que é a taxa de câmbio, processos muito dramáticos de apreciação ou depreciação causados por fluxos financeiros. Segundo, desafios na área comercial. Terceiro, na área de investimento. Grosso modo, se está falando, tanto na área comercial quanto na de investimentos, da questão protecionista: se os países devem se defender, até que ponto se sentem atacados. Pressões protecionistas são naturais. Em contextos recessivos elas aumentam; na prosperidade diminuem. Portanto, as pressões protecionistas são cíclicas. Mas quase sempre são péssimo conselheiro. É raríssimo o caso que você consegue justificar de fato a medida protecionista do ponto de vista do bem estar social do país que está implementando a medida. Normalmente as pressões protecionistas beneficiam lobbies. Beneficia um lobby empresarial e prejudica outro lobby empresarial. Mas do ponto de vista do bem-estar da sociedade, elas fazem mais mal do que bem.

Essa crise mundial vai durar dez anos, como afirmam alguns?
O mundo tem lógicas muito distintas, apesar de globalizado. Os EUA estão numa trajetória de recuperação. Vai haver uma eleição presidencial. Como a recuperação é frágil, é muito importante saber se as políticas governamentais vão continuar. Economia não é um exercício econométrico, porque as pessoas pensam, os governos agem, a política existe. Então é muito difícil fazer previsões. Mas os EUA, se não tiver nenhum desacerto na política econômica maior, tende a se recuperar. A China tem um "soft landing", mas não é nada desastroso. O grande desafio para o mundo para a frente é a Europa.

E não há um horizonte de tempo?
É difícil prever. Uma coisa é uma tendência econômica. Se você me perguntar se a economia brasileira, tudo o mais constante, estará em recuperação no segundo trimestre de 2012 comparado ao último trimestre de 2011, a resposta é provavelmente sim. Porque estou falando de um processo com uma dinâmica basicamente econômica. Na Europa não estou falando de uma dinâmica econômica mais. É também econômica, mas, antes de mais nada, é política de decisão. Tem eleição na França. Tem uma situação na Grécia complicadíssima. A atual geração de líderes europeus, do ponto de vista econômico, é extraordinária. Todos eles. Têm extraordinárias lideranças hoje na Europa: na Grécia, na Itália, em Portugal, na Espanha, na Irlanda. De primeiríssima qualidade. A pergunta é a seguinte: vão sobreviver ao próximo teste das urnas? A Europa tem hoje um desafio essencialmente político de governança. Esse é muito difícil de prever.

Há os que afirmam que há um governo Goldman Sachs na Europa porque vários desses líderes que você aponta passaram pelo banco. Isso também é um clichê?
Isso não faz sentido nenhum. Alguns deles passaram pela Goldman, que era um empregador de excelência, que melhor pagava. Pessoas talentosas, 15 anos atrás, naturalmente preferiram trabalhar na Goldman a trabalhar em bancos que pagavam menos.

Como o sr. define o governo Dilma do ponto de vista da política econômica? É desenvolvimentista, ortodoxa?
É difícil dar um resumo. O "soft landing" foi muito bem sucedido. Do ponto de vista fiscal, a performance de 2011 foi melhor do que a de 2010. É um governo mais austero. Houve uma contração dos balanços do BNDES, o que é um lado positivo de ajuste. Tem várias dimensões que aconteceram em 2011 inequivocamente positivas. Todas sendo vistas como contraponto da herança de 2010 e 2009. Por outro lado, tem uma tendência protecionista que não me parece boa.

Por exemplo?
Automóveis. No caso você está protegendo um grupo de multinacionais contra outro grupo de multinacionais. É difícil de entender a racionalidade.

Emprego no Brasil não seria uma justificativa?
Não, é difícil. As medidas protecionistas como um todo dificilmente tem justificativa. A tendência intervencionista tem que ser contida, porque ela dá uma satisfação imediata e faz um desacerto no longo prazo.

Mas todos os países adotam medidas assim.
Não existe país perfeito no mundo. Quando se faz gestão econômica, você tem que evitar errar. Se outros erram é problema deles. Na parte macroeconômica [Dilma] foi bem sucedida. Tem uma tendência protecionista que não é ideal. Há uma série de reformas estruturais que poderiam ser feitas em sistemas como FGTS, FAT etc.

Que é a sua proposta.
Que é a minha proposta. Poupança pública não cresceu. Você tem uma diminuição de gastos públicos. O Brasil tem uma trajetória preocupante em gastos públicos, que não é de agora. Uma trajetória pela qual a arrecadação cresce porque o país cresce. O país se formaliza, felizmente, isso é um ótimo sinal. Ao mesmo tempo os gastos públicos crescem pari passu. Não estou falando de superávit, estou falando da contração de gastos públicos. O Brasil teria muito a ganhar com contração de gastos públicos e desoneração fiscal. Sei que é uma plataforma impopular, que ninguém fala. As duas coisas têm que ser feitas pari passu. Teria um enorme ganho de eficiência na economia se essa linha fosse seguida.

Qual sua avaliação sobre o desempenho do BNDES? O sr. concorda com essa linha dos "campeões nacionais"?
Não. Eu entendo a racionalidade dessa linha dos "campeões nacionais", mas acho que a lógica que deveria nortear é um pouco diferente. Há setores onde se têm um argumento de falhas do mercado. Basicamente porque o Brasil vem de uma história traumática de alta inflação ainda tem horizontes de empréstimos relativamente curtos. Há áreas onde não o preço do custo de empréstimo, mas a duração do empréstimo provida pelo mercado privado é relativamente limitada. Nesse sentido se pode dizer que tem uma falha de mercado.

Mas a análise tem que ser a partir das falhas de mercado e não da constituição de grupos. É um outro enfoque. Como conceito básico, que é o conceito de falha de mercado, o que deveria nortear é mercado de capitais privado. Quem tem acesso ao mercado de capitais privado não deveria usar recursos do BNDES. O conceito certo é enfocar para onde o mercado de capitais não supre. É para onde as coisas deveriam ser orientadas. Mais do que a ótica dos "campeões nacionais" gosto da ótica de entrar onde o mercado de capitais não entra.

Tem três aspectos sobre BNDES. Tem o tamanho do balanço, que está diminuindo, o que é muito positivo. Tem a precificação dos empréstimos, dos juros direcionados. Tem o aspecto de qual é a ótica de quem recebe o empréstimo. Se é uma ótica dos campeões, da formação de grandes grupos. Esse raciocínio tem seus méritos. Coreia do Sul e vários países adotaram essa abordagem. Deveríamos adotar uma outra, que é estar presente onde o mercado de capitais privados não está. Se tem uma falha do mercado de capitais tenho um argumento para concessão de empréstimo forte. É a visão liberal.Se o mercado estiver falhando, eu entendo. Agora se o mercado não estiver falhando não tem porquê.

Mas o mercado andou falhando demais nesses últimos tempos, não? Não ficou prejudicada essa linha de pensamento?
A crise de 2008 é uma gigantesca falha regulatória. É uma crise de crédito. Os bancos concederam crédito excessivamente inventando certas estruturas de crédito paralelas ao sistema bancário. A banca internacional passou um drible no regulador. Não é que as leis estavam erradas. O que houve foi uma gigantesca falha regulatória.

Mas crise não foi gerada pela queda de renda, que levou as pessoas a buscarem mais crédito?
Pelo contrário. A origem é o crédito. As pessoas sempre têm limitação de renda. O sistema hipotecário norte-americano induz as pessoas a se endividarem. De outro lado, se tem os bancos que deram um drible no regulador e concederam crédito. Juntou a fome com a vontade de comer. Na raiz o problema é a falha regulatória. Isso gerou uma enorme confusão. As pessoas dizendo que a crise de 2008 provou que o capitalismo tinha falhado. Na prática houve uma desregulamentação sem consentimento do regulador.

E o investimento público?
Depende de uma contração de gastos correntes. Se houver redução de gastos correntes, você consegue. O grande desafio é diminuir gastos correntes em matérias não relacionadas a investimentos. É um desafio de eficiência, de gestão. Isso não é do governo Dilma, vem de muito tempo. A máquina pública cresce sem medida.

Qual vai ser o impacto deste aumento do salário mínimo?
Isso é desastroso. É uma regra desprovida totalmente de qualquer sentido. É uma superindexação. Porque é uma indexação pela inflação passada e mais ajuste do PIB. É uma regra na contramão de tudo que o país precisa. É uma regra que visa recompor o valor do salário mínimo, mas que na verdade tem um efeito prejudicial do ponto de vista de custos do trabalho, exerce uma pressão inflacionária. Tem um efeito danoso sobre os orçamentos de Estados e municípios que empregam muita gente com salário mínimo. E particularmente danoso sobre a Previdência, porque as aposentadorias são relacionadas ao mínimo.

Mas esse aumento não dinamiza a economia, já que aumenta a renda?
Não. Se você quer dinamizar a economia, você diminui a taxa de juros e diminui impostos. É a maneira certa de dinamizar a economia. Essa é a maneira errada.

Mas o aumento do mínimo não distribui renda?
Não. Isso provoca pressão inflacionária, de um lado. Aumenta os gastos com inativos da União. Aumenta o gasto público na veia.

Então o aumento do salário mínimo não é distribuição de renda?
Não. A melhor distribuição de renda que o Brasil pode fazer, de um lado, é a ajuda direta aos mais necessitados, com bolsas família. De resto, suba o salário mínimo de acordo com a inflação, se você quiser chegar a tanto. Deixa o mercado funcionar. A melhor distribuição de renda é diminuir a taxa de juros, permitir o desenvolvimento do sistema de hipotecas no Brasil, reajustar bem o FGTS, que é um roubo dos trabalhadores. Evite que os trabalhadores sejam roubados. Quer melhor distribuição de renda do que esta? Posso dar vários exemplos. Mas essa regra [de reajuste do mínimo] está na contramão de tudo o que o Brasil precisa. O problema é que, uma vez criada a regra, entendo que seja politicamente difícil escapar dela.

E o que o PSDB e a oposição deveriam propor?
Não quero falar sobre política. Não é a minha especialidade.

Mas você propôs ao PSDB mudar a questão dos juros subsidiados.
É um certo tabu no Brasil. Temos sistemas hoje que foram montados na época do governo militar ainda, que tinham uma certa racionalidade. O Brasil do Plano Real para cá evoluiu extraordinariamente. Hoje esses sistemas se tornaram contra-produtivos. Basicamente se você eliminar os chamados créditos direcionados a taxa de juros para a economia como um todo vai ser menor. Melhora a distribuição de renda e melhora a alocação de recursos. Só tem vantagens. Mas é um gigantesco tabu, parte porque a questão é complexa e parte por causa de lobbies empresariais que se beneficiam do atual sistema.

Então o Brasil não deveria ter política industrial?
Política industrial pode ter ou pode não ter. Política industrial não tem nada a ver com o que está acontecendo. Política industrial se faz da maneira usual. Tem um orçamento. Se você quer beneficiar determinado setor, se faz isenção fiscal específica. Transparente, consta do orçamento, as pessoas sabem do que se trata, se tem objetivos claros: esse setor tem isenção fiscal por determinado tempo. Não estou dizendo que política industrial seja justificado ou não. Se o país optar por fazer política industrial, essa é a maneira certa de fazer.

Não via BNDES?
Não por uma via torta que distorce a formação da taxa de juros. No caso do FGTS, concentra renda. Há distorções de todos os lados. Qualquer que seja a o objetivo, ele tem que ser feito de outra maneira. Dar um incentivo no orçamento. É a maneira correta, pública transparente _se quiser usar uma palavra que nem gosto muito: republicana de fazer isso. Quando você faz política industrial por vias tortas, penalizando trabalhadores na aplicação do FGTS, distorcendo a formação da taxa de juros, fazendo com que a Selic seja mais alta, você cria uma nuvem de complicações que embaçam a percepção do problema e gera distorções por todos os lados. No final, você nem sabe avaliar se a política industrial é bem sucedida ou não.

O sr. foi preso e torturado na ditadura militar. Como analisa a criação da Comissão da Verdade?
Sempre fui a favor da instalação da Comissão da Verdade. Há inúmeras críticas sobre como foi instaurada, conduzida, seus limites etc. Ainda é cedo para fazer uma avaliação.

Gostaria de fazer parte dela?
Acho que há pessoas mais significativas do que eu para fazer parte.

No relato sobre aquele período, o sr. fala da teia de interesses que se formou entre empresários, políticos, gestores do Estado naquela época e que resultou num silêncio prolongado sobre a ditadura. Como o sr. analisa essa questão hoje? A lei da anistia deveria ser revista?
A revisão da lei da anistia é um tópico mais difícil. É pena que a discussão esteja acontecendo apenas agora.

Por que o sr. acha que só acontece agora? Por que a demora?
O Brasil tem seus pactos de silêncio. Falei há pouco sobre FGTS, FAT, que é outro pacto de silêncio. Se você pensar sobre a história brasileira, não é à toa que o Brasil foi o último país do mundo a terminar com a escravidão. Ou foi o último país do mundo a terminar com a hiperinflação.

Como explicar isso?
É mais uma pergunta para um historiador do que para um economista. Existe um pacto entre Estado e grupos empresariais e elites no Brasil que é um pacto, digamos, não-liberal, antiliberal.

Como assim?
A plataforma liberal..

Liberal no sentido norte-americano.
Liberal no sentido norte-americano, que é plataforma da diminuição da intervenção estatal e das liberdades civis. Essa plataforma foi cronicamente fraca no Brasil. O Brasil é um país do novo mundo. Nesse sentido, é mais semelhante aos EUA do que qualquer outro. A terminologia dos Brics é muito enganadora. O Brasil tem poucas similaridades com a China, que é uma civilização milenar. A similaridade brasileira é com os EUA. São países de dimensão continental, com sistemas democráticos, formados pela imigração basicamente européia e africana, um pouco asiática. Países cuja cultura indígena local desapareceu. Não são países, como na América espanhola, que tem o substrato de uma outra cultura. Mas, contrariamente aos EUA, é um país onde o liberalismo foi sempre fraco. Acho que por detrás dessas várias questões _escravidão, FGTS ou hiperinflação _ se tem um denominador comum: os mais prejudicados são os mais pobres, sempre. Numa hiperinflação o prejudicado é quem nem conseguia ter conta bancária. Na escravidão, não preciso nem falar. O FGTS hoje é de quem trabalha.

A escravidão financiava o governo do imperador...
Sem dúvida. Escravidão houve em outros países, outros tiveram servidão. Interessante é que o Brasil foi o último. Chamo atenção sobre isso porque o país tem um pacto entre elites e governo antiliberal. É um pacto a favor do Estado e que sempre se pautou por uma certa repressão de liberdades civis.

É um pacto a favor do Estado, do empresariado e contra os mais pobres, é isso? É um pacto conservador?
Se você disser que é contra os pobres você está falando uma coisa errada. Ninguém é contra os pobres.

Mas a resultante é essa?
Pelo contrário. O pacto é feito para tentar beneficiar. Quando você faz políticas protecionistas, créditos direcionados, quando privilegia determinados grupos, quem está implementando e quem recebe benefícios genuinamente pensam que estão fazendo o bem comum.

Pelo menos o discurso é esse.
O discurso é esse e muitas vezes as pessoas pensam assim. O interessante não é o discurso, mas, historicamente falando, é [pensar] porque a tradição liberal foi sempre tão fraca no Brasil e continua sendo fraca. Isso se aplica inclusive para liberdades civis. O caso da Comissão da Verdade é um exemplo.

Olhe, por exemplo, para um pequeno, em escala, episódio de violação das liberdades civis em Guantánamo, associado ao governo Bush. Num contexto específico da lei patriótica etc, aquilo suscitou uma resposta da sociedade norte-americana liberal em defesa das liberdades civis muito forte. No contexto de uma extraordinária agressão contra a civilização norte-americana que foi a barbaridade do 11 de Setembro. Mas a sociedade reagiu ainda assim. A questão liberal no Brasil é fraca historicamente nessas duas dimensões, na econômica e na política.

Isso perpassa governos de diferentes matizes?
Claro que certos governos, dependendo da orientação ideológica, puxam isso um pouco mais ou um pouco menos. Têm matizes, diferenças importantes. Mas não é um fenômeno de hoje. Tem uma história que foi feita assim.

A política de juros, que faz uma enorme transferência de riqueza para os mais ricos, faz parte desse pacto anti-liberal?
Não é que as pessoas são antiliberais para fazer maldades. Tem uma certa mentalidade antiliberal. Acho que até um melhor termo que eu usaria, em vez de pacto antiliberal, uma mentalidade antiliberal. A taxa de juros eu não colocaria nessa linha, embora ela tenha certamente um efeito concentrador de renda. Ela responde a outros fatores.

O Brasil fez enormes violências contra a poupança financeira ao longo do tempo. Desde a manipulação da correção monetária, chegando ao extremo no Plano Collor. Foi gerada uma certa insegurança e um prêmio de risco associado à poupança financeira. Quanto mais tempo passa sem que você faça nenhuma violência contra poupança financeira, menor o trauma do passado e melhora esse prêmio de risco. O respeito aos contratos, os direitos de propriedade vão diminuindo esse temor. A taxa de juros tem um componente próprio, não faz parte dessa mentalidade antiliberal. Se você baixar a taxa de juros, você melhora dramaticamente a distribuição de renda. Não tem a menor dúvida. Por isso minha insistência de que o ajuste cíclico seja feito sempre via taxa de juros.

O sr. acha que o ritmo atual de redução da taxa poderia ser intensificado?
A inflação está rodando a 6,5%. Ainda tem um problema inflacionário que está longe de estar bem equacionado. O aumento de salário mínimo é uma pressão altista sobre inflação. O mercado tem uma projeção de taxa de juros ainda com uma queda. Para diminuir de uma forma sustentada o elemento crítico é o controle fiscal. Com o tempo, esse prêmio de risco causado pelo trauma da poupança financeira vai diminuindo naturalmente, desde que os governantes respeitem contratos. Do Real para cá, as taxas de juros reais são as menores que o Brasil já teve. Ainda é extraordinariamente alta. O tempo joga a favor, desde que você respeite contratos porque as memórias do passado vão se diluindo. Mas se você avançasse no sentido da consolidação fiscal mais agressiva, mais firme poderia reduzir mais a taxa de juros e num ritmo mais acelerado.

O sr. leu o "Privataria Tucana"?
Não falo sobre isso.

Como está o seu indiciamento na Satiagraha?
Não quero falar sobre isso.

E sobre Daniel Dantas?
Não quero falar sobre isso.

Você que trabalhou dos dois lados, o que acha que deveria mudar na relação público-privado no Brasil?
O Brasil tem hoje os instrumentos legais adequados: a quarentena, leis que proíbem o uso de informações privilegiadas etc. Do ponto de vista da cultura de gestão das coisas públicas talvez o país precise amadurecer.

Como o sr. avalia o processo de fusões e aquisições?
O Banco foi líder inconteste neste ano de 2011 no processo de fusões e aquisições e tenho certeza que será o líder inconteste em 2012 também. É uma área central dentro da nossa atividade. Além da nossa liderança tem o fato de que a economia brasileira em si tem um dinamismo muito grande crescente de mercado de capitais. Às vezes esse mecanismo se traduz em mais IPOs, às vezes em fusões em aquisições. É quase uma gangorra. Este ano [2011] foi um ano em que a bolsa brasileira sofreu muito. Em compensação, as fusões e aquisições cresceram muito. Ano que vem acho que a bolsa brasileira deve ter uma performance melhor, dependendo da Europa. Acho que o fluxo de fusões e aquisições vai continuar. De um lado o investimento estrangeiro no Brasil está só começando. Tem uma atração enorme. O Brasil entrou no mapa dos investidores globais. É o mapa da atenção, mas ainda não é o da presença de dinheiro colocado. Vai ter uma enorme entrada de investimentos estrangeiros. No ano que passou a bolsa brasileira teve uma performance sofrível, mas os investimentos estrangeiros diretos estão no pico. Esse processo de entrada maciça de investimentos diretos estrangeiros vai continuar e é muito bom que continue. Têm fusões e aquisições dos dois lados. Tem pelo dinamismo crescente no mercado de capitais brasileiro e pela entrada de investidores estrangeiros. Estou muito otimista para este mercado em 2012. 

sábado, 14 de janeiro de 2012

II ENBE - Encontro Nacional dos Blogueiros de Economia


É com grande alegria que informamos que o II Encontro Nacional dos Blogueiros de Economia será realizado dia 9 de Março em Belo Horizonte no IBMEC - MG.

O evento reunirá blogueiros de economia do país inteiro. Serão três painéis temáticos onde dicutiremos sobre: “A Blogosfera e as Crises Econômicas”, “Os Blogs Como Ferramenta de Ensino da Economia” e “A Política Fiscal na Blogosfera”.

A organização é do Cláudio D. Shikida (www.gustibusgustibus.wordpress.com) e do Cristiano M. Costa (www.cristianomcosta.com), o que antecipadamente já garante o sucesso do evento. 

O mundo como ele é.


Antonio Delfim Netto, especialmente para a FOLHA DE S. PAULO de 11.01.2012.

O observador desprevenido do caótico panorama mundial e das incertezas que este introduziu no que ele supunha ser a "ciência econômica" tem a tendência de fazer desta tábula rasa e procurar a salvação no pragmatismo irresponsável.

A crise que estamos vivendo não é uma daquelas ínsitas no particular sistema de economia de mercado, cujo codinome de guerra é "capitalismo". Foi produzida por uma avalanche do pensamento único, cujo codinome de guerra é "neoliberalismo", apoiado por Estados corrompidos pelo sistema financeiro internacional.

Quebrou-se, assim, o importante equilíbrio entre a urna e o mercado, que conduz, não linearmente, ao aperfeiçoamento civilizatório da "economia de mercado" -processo este que se renova e se civiliza um pouco mais a cada crise.

A economia tem a seu favor o fato de que muitas das suas "escolas" nunca aceitaram a hipótese dos mercados "perfeitos e capazes de se autorregularem", hipótese esta que produziu a tragédia em que vivemos. E mais. Um punhado de economistas antecipou e chamou a atenção para o que se armava em nome das "inovações financeiras" que iriam "facilitar o desenvolvimento e diminuir os custos de transação".

É hora, portanto, de reafirmar que existem mesmo princípios econômicos e realidades insuperáveis. Por exemplo, que há uma troca permanente e incontornável entre o consumo maior e o investimento menor no presente em contraposição a um consumo menor e a um emprego menor no futuro. Ou que é uma grande tolice tentar violar as identidades da contabilidade nacional.

É preciso reconhecer que não há um modelo de equilíbrio geral do qual se possam extrair recomendações normativas que permitam classificar, "a priori", como prejudicial ao desenvolvimento econômico qualquer política governamental.

É evidente, por outro lado, que não há nenhuma razão para supor que o Estado tenha sempre -e necessariamente- um conhecimento superior da realidade e, logo, que seja dotado da "onisciência" que recomenda sua "onipotência" e "onipresença" na economia.

Porém, quando se trata de política de desenvolvimento industrial, o Estado pode "contabilizar" melhor os efeitos diretos e indiretos de suas compras.

Ele pode "ver" (porque teoricamente pode agregá-los) os resultados sociais de uma produção industrial que o setor privado não pode internalizar em seus preços, mas a sociedade recebe como aumento de renda.

Não há nada de errado, "em princípio" e "a priori", contra o benefício ao produtor, desde que seja compensado -no custo das empresas compradoras- com créditos do Tesouro gerados pela alta da receita criada pelo valor adicionado da produção interna. 

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Profecias para 2012.


Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Este especial artigo foi publicado no VALOR ECONÔMICO e mostra a visão do professor Delfim Netto para este 2012 que já começou.   

As "profecias" para 2012 estão dadas. As medianas das informações do Boletim Focus do Banco Central de 30 de dezembro de 2011, produzidas pelas opiniões de profissionais altamente qualificados, estão na tabela abaixo.

Duas circunstâncias são importantes: 1) há um viés informacional a favor dos "consultores financeiros", que pode ter alguma influência. O "valor" de mercado do consultor depende da qualidade da sua "consulta". Ele tem de se esforçar para ser o mais preciso possível, mas não pode se afastar muito da opinião dos outros. Se todos errarem juntos ninguém de fato errou. Apenas ignoraram alguma condicionalidade; 2) o número de condicionalidades não explicitadas que as previsões do Focus implicam não é enumerável.

Depois de terminar o ano, se as "profecias" diferirem da realidade, os "desvios" serão facilmente explicáveis, porque tudo o que poderia ter acontecido já aconteceu, não restará nenhuma condicionalidade. Como disse J. M. Keynes, em carta ao grande economista e historiador Jacob Viner, "a experiência mostra que o que acontece é sempre algo contra o qual nunca nos prevenimos".

Profecias feitas com modelos aparentemente simples, como é o caso, por exemplo, da "contabilidade do crescimento" (com a qual se calcula o "produto potencial") envolvem ligações internas que as tornam muito vulneráveis e têm consequências sobre toda a economia (por exemplo, a divertida teoria dos ciclos reais) e sobre a política econômica (por exemplo, a teoria das metas inflacionárias).

A "contabilidade do crescimento" é um exercício de cálculo diferencial, onde se supõe que as variáveis "trabalho" e "capital" são bem definidas e independentes, condicionadas por uma função de produção que revela o limite superior do PIB. Com a função de produção, bem educada, podemos calcular a contribuição, na margem, de um aumento do fator "trabalho" e de um aumento do fator "capital". Somados, eles informam o aumento do PIB que deveria resultar desses dois aumentos.

Acontece que esses incrementos, quando calculados empiricamente, são sempre muito menores do que o aumento empírico do PIB. A "solução" foi atribuir a essa diferença o pomposo nome de produtividade total dos fatores (o que falta para completar o aumento não "explicado" do PIB).

Há dois fatos notáveis sobre essa operação. Já nos anos 50 do século passado: 1) Herbert Simon mostrou que o sucesso empírico da função de produção usada (Cobb-Douglas) é o resultado de uma simples manipulação algébrica da identidade renda global = renda do trabalho + renda do capital; e 2) Moses Abramovitz, mostrou que as variáveis "trabalho" e "capital" estão longe de ser independentes e que o "resíduo" (a produtividade total dos fatores, PTF) era um "saco de caranguejos". Ele a chamou, com muita propriedade, de "medida da nossa ignorância", pois "explicava" 80% de variação do PIB, enquanto a soma dos "fatores" chegava a 20%.

Pois bem, nos últimos 60 anos fizemos muito progresso no refinamento das definições do "trabalho", a ponto de chamá-lo de "capital humano", e do "capital", mas avançamos pouco na compreensão da PTF. O recente "survey" sobre o assunto (Hsieh,C.T; Klenow,P.J. "Development Accounting", AEJ Macroeconomics, 2, 2010), que analisa as "causas" das diferenças de crescimento entre as nações, termina melancolicamente: "Aprendemos muita coisa nas últimas décadas sobre os determinantes dessas diferenças. Ainda que importantes questões não estejam resolvidas, particularmente o papel das diferenças do capital humano, existe um grande consenso que estas dão conta entre 10 a 30% delas; o capital físico talvez explique qualquer coisa como 10%. As diferenças entre a produtividade total dos fatores contam a maior parte da história: talvez entre 50 e 70%", praticamente o mesmo de 1950!

A verdade - continuam os autores - é "que entendemos muito mal, porque as PTFs diferem. Sugerimos que um aumento da PTF não tem um efeito apenas no crescimento do PIB, mas pode ter um importante aumento indireto (previsto por Abramovitz em 1955) no capital físico e humano pela redução do preço do capital e da educação com relação ao preço do PIB... Finalmente, sugerimos que a má alocação de fatores entre firmas e setores industriais pode ser um determinante importante das diferenças da PTF, mas resta saber quais as forças que levam a essa má alocação".

Como é possível, no início de 2012, que alguém ainda leve a sério a "previsão científica" apoiada numa função Cobb-Douglas e numa PTF "inventada", que o produto potencial do Brasil em 2012 é de 3,5%? E que qualquer "ameaça" da economia de superá-la deve exigir o aumento da taxa de juros real?

Voltamos a insistir: 2012 não está escrito nas estrelas! Ele será o que nós, governo e a sociedade, soubermos fazer dele, se tivermos a coragem e a inteligência necessárias para enfrentar a "má alocação" de nossos fatores (públicos e privados) e promover políticas que aumentem, simultaneamente, a oferta e a demanda globais, como é o caso, por exemplo, dos investimentos em infraestrutura que eliminem rapidamente gargalos produtivos.

O otimismo do secretário de Política Econômica.


Editorial no ESTADÃO de hoje comenta sobre o otimismo do secretário de Política Econômica, o que é sempre bom ler neste início de 2012.  

No primeiro Relatório de Inflação do ano passado, o Comitê de Política Monetária considerava que havia 50% de possibilidade de o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) fechar o ano entre 4,8% e 6,3%. Na realidade, fechou em 6,5%, mais do que a previsão relativa a 30% das possibilidades. Isso mostra as dificuldades de prever a taxa de inflação no início do ano. O secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, Márcio Holland, numa entrevista ao jornal Valor, não teme correr o risco de afirmar que este ano a pressão sobre os preços será menor.

Para o secretário, no ano passado o Brasil enfrentou a conjunção de dois fatores que elevaram os preços: a alta de preço das commodities e o quadro de dificuldades nos países ricos. Ele reconhece, porém, que o modelo de política econômica brasileiro baseado no crescimento da demanda interna teve responsabilidade na inflação.

No momento há uma queda de preço das commodities em razão, basicamente, do arrefecimento econômico da China - queda mais sensível no caso dos minérios do que no dos produtos agropecuários, cujo destino não são apenas países asiáticos. Ora, a manutenção de um preço elevado desses produtos tem grande influência no custo de vida das pessoas de renda mais modesta. Podemos acrescentar, ainda, outros fatores, como a seca no Rio Grande do Sul, que poderá aumentar os preços de parte dos produtos agrícolas.

Márcio Holland se refere à elevação do preço do etanol: mesmo admitindo que a produção de cana seja maior e destinada à produção de etanol, há, agora, a possibilidade de exportar esse produto para os EUA sem aumentar a oferta interna.

O ponto que mais preocupa, assinalado pelo secretário, é o modelo de crescimento baseado em estímulos ao consumo. Márcio Holland nos lembra que, desde o primeiro mandato de Lula até agora, o valor real do salário mínimo, incluindo o novo, cresceu 66%. Não se pode menosprezar o último aumento, de mais de 7,5% em valor real, que levará ao crescimento do poder aquisitivo de uma parte importante da população, inclusive dos aposentados.

O secretário lembra que o brasileiro não tem o hábito da poupança. É, pois, possível que o aumento de renda seja gasto - e isso será ampliado por uma política de crédito generosa, especialmente quando fornecido por meio de empréstimos subsidiados. Holland admite que parte dos produtos consumidos será importada (em detrimento da indústria nacional) a um preço que, dependendo da taxa cambial, poderá tornar maior o déficit nas transações correntes.

A (des)ordem internacional em 2012.


Rubens Barbosa, hoje no O Estado de S. Paulo e a sua análise sobre 2012.

O novo ano nasce sob a marca da instabilidade política no cenário internacional e da volatilidade e da incerteza na área econômica. A democracia e o mercado estarão em xeque em 2012.

O mundo vive em sobressalto diante da crise econômica e financeira que se abate sobre os EUA e a União Europeia (UE). Não bastasse, são igualmente inquietantes alguns sinais que, isolados, podem não parecer preocupantes, mas, quando vistos em conjunto, adquirem o caráter de uma possível grave crise nos próximos meses.

O quadro mais complexo está no Oriente Médio. Permanece a possibilidade de um ataque, aberto ou por meio de ações clandestinas, às instalações nucleares no Irã. Notícias de que o Reino Unido e Israel se preparam militarmente para atacar o Irã diminuíram, mas não desapareceram, como evidenciado pela questão da passagem do petróleo pelo Estreito de Ormuz. A concentração de tropas norte-americanas no Kuwait e o lançamento bem-sucedido de mísseis de longo alcance israelense e iraniano indicam que preparativos de lado a lado se intensificam. Isso não quer dizer que o ataque seja iminente nem que será levado a efeito, mas esses fatos ajudam a aumentar a tensão na área, agravada pelos ataques recíprocos Israel-Hamas, apesar da retomada das conversações. O estado de guerra civil na Síria contra o governo de Bashar Assad pode propiciar a repetição da fórmula utilizada pela Otan na Líbia. Para complicar ainda mais a situação, depois da queda dos regimes autoritários da Tunísia, do Egito e da Líbia, no Norte da África a primavera árabe começa a se defrontar com as inevitáveis rivalidades internas, questões tribais e religiosas afloram e ameaçam a transição para a democracia, podendo reacender focos de guerra civil. A retirada do Afeganistão e do Iraque das forcas militares dos EUA não contribuirá para reduzir as tensões e vai concentrar as atenções nas ações do Irã nesses dois países. O Paquistão nuclear continuará a preocupar pela instabilidade política.

As Nações Unidas, locus para a discussão de questões de paz e de segurança, saíram desgastadas depois dos episódios na Líbia. A resolução aprovada permitindo medidas necessárias para proteger vidas humanas foi ampliada, sem autorização da comunidade internacional, pelos membros da Otan, liderados pelo Reino Unido e pela França, com a tácita cumplicidade dos EUA. Não só para interferir numa guerra civil, mas para caçar e matar Muamar Kadafi. A experiência líbia é o primeiro caso de aplicação do novo conceito estratégico de atuação de uma forca da segurança global capaz de intervir em outros países com ou sem autorização do Conselho de Segurança. Estabeleceu-se perigoso precedente que poderá ser invocado a qualquer momento contra a Síria, o Irã ou outros países vistos como ameaça à comunidade internacional. O Brasil, que corretamente se absteve quando da aprovação da resolução sobre a Líbia, está apresentando proposta para limitar esse tipo de excesso, sugerindo que a preocupação da ONU seja não só no sentido de exercer a responsabilidade de proteger, mas também ao proteger.

Por outro lado, o pedido da Autoridade Palestina de ingresso como membro permanente da ONU, feito ao Conselho de Segurança, foi esquecido. Os EUA e Israel retaliaram, com corte de dotações orçamentárias, a decisão de entrada da Palestina na Unesco.

Ao preocupante cenário político internacional devem-se acrescentar a instabilidade e o baixo crescimento, que deverão perdurar entre cinco e dez anos em razão das crises econômicas na Europa e nos EUA.

A crise europeia continuará a manter alta a temperatura política no continente, por causa da negociação de um novo tratado de responsabilidade fiscal e da possibilidade concreta de que outros países tenham de ser socorridos a fim de evitar a ameaça de rompimento do sistema monetário ou mesmo da união política do continente.

O G-20 continuará procurando se consolidar como um fórum para o exame da evolução da crise econômica e o dólar continuará a perder valor. A produção de petróleo não está aumentando, o que manterá os preços altos por muito tempo, acrescentando mais um elemento de pressão contra a volta do crescimento.

As demonstrações anticapitalismo, fruto da frustração da classe média, que surge como grande perdedora, espalhar-se-ão por diversas capitais e continuarão a exercer pressão sobre os principais centros financeiros, embora sem consequências práticas.

Os países emergentes, China à frente, continuarão a liderar o crescimento da economia global e deverão superar em 2012, em termos de produto interno bruto, os países desenvolvidos. O Brasil deverá ter seu crescimento reduzido pela crise. O comércio internacional deverá estagnar ou registrar uma expansão menor, em função da desaceleração econômica nos EUA e na UE e da restrição dos financiamentos a exportação.

Eleições em 24 países, inclusive nos EUA, na França, na China e na Rússia, definirão os novos líderes que terão de enfrentar os desafios impostos pelas incertezas e instabilidades.

Os EUA, no meio de uma continuada crise de confiança, de baixo crescimento e de aumento do desemprego, começam a se preparar para as eleições presidenciais. A campanha para as prévias, do lado republicano, mostra como o sistema político naquele país está disfuncional, com efeito negativo direto sobre o funcionamento do governo. O fator preocupante é que os neoconservadores - fundamentalistas falando inglês - estão de volta, com toda a força, e a reeleição de Barack Obama - que até aqui parece a melhor perspectiva - não está assegurada. A vitória de um candidato republicano certamente teria um impacto expressivo sobre o cenário político e econômico global.

A "Grande Recessão"


Yoshiaki Nakano, ex-secretário da Fazenda do governo Mário Covas (SP), é professor e diretor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas - FGV/EESP. Escreveu este artigo especialmente para o Valor Econômico de hoje. 

A crise financeira do subprime e o colapso do sistema financeiro com a quebra do Lehman Brothers desencadeou a chamada "Grande Recessão". Mas ela é um fenômeno distinto da crise financeira em si. Com a crescente incerteza, as economias dos países centrais saem da normalidade e passam a ser regidas por comportamentos induzidos pela incerteza, medo, pânico etc., nos quais prevalecem a lógica da desalavancagem, da "balance sheet recession" e da demanda de ativos com sinais trocados gerando instabilidades nesses mercados. Como entender o que acontecerá como a economia global nesse contexto? A experiência histórica similar, a "Grande Depressão de 1890", a "Grande Depressão de 1930" e a crise japonesa dos anos 90, nos permite fazer analogias e algumas conjecturas sobre o que acontecerá nos próximos anos.

A atual "Grande Recessão" não deverá ser tão profunda quanto a "Grande Depressão de 1929 a 1939", afinal aprendemos alguma coisa com ela, mas será tão abrangente e duradoura quanto e deverá ter significado histórico similar ao da "Grande Depressão do final do século XIX.

Será abrangente no sentido de ser uma crise global, diferentemente da crise japonesa, ou seja, é uma crise do próprio processo de integração e globalização financeira promovido pela plutocracia financeira que vem exercendo poder, tanto nos Estados Unidos como na Europa (talvez nem tanto na Alemanha). A "Grande Recessão" está centrada nos Estados Unidos e Europa, e já vem causando uma crise de governabilidade, mas tem também causas e dimensão internacional de forma que nenhum país ficará inume a seus efeitos de uma forma ou outra.

Será duradoura porque como a crise dos anos 30 e a crise japonesa ela afeta tanto os credores/emprestadores como os devedores/tomadores de empréstimos. O Federal Reserve (Fed, banco central americano) aumentou brutalmente a oferta de moeda e reduziu a taxa de juros para próximo a zero procurando salvar credores/emprestadores, subsidiando-os. Assumindo a função de emprestador em última instância, absorve ativos problemáticos no seu balanço, mas não resolve o problema dos devedores, que tiveram sua riqueza financeira destruída pela crise, e agora têm que pagar as dívidas.

A política monetária pode também resolver o problema de liquidez do credor/emprestador, que detém ativos emitidos pelos devedores, já que o banco central está disposto a prover recursos com juros zero para que continuem carregando os ativos e assim fazendo por longo período poderá mascarar, amenizar e, com o tempo suficientemente prolongado, até resolver o problema de insolvência.

Do outro lado, tanto as famílias como as empresas que se endividaram excessivamente durante o boom de crédito que antecedeu a crise, têm que desalavancar, aumentando a poupança (deixando de consumir e de investir produtivamente) para pagar a dívida acumulada. A "Grande Recessão" é o resultado dessa redução persistente da demanda agregada. Aqui a política monetária não tem efeito, pois somente uma política fiscal ativa pode recolher o aumento de poupança privada e reinjetá-la de volta no sistema econômico como demanda, para reanimar a economia. E essa foi a reação de todos os governos. Mas ao executar essa política, o déficit público aumenta e, com isso, a dívida publica se transforma também em crise da dívida soberana. A reação política da sociedade contra a classe dirigente será quase imediata. Ela está perdendo tanto a credibilidade como legitimidade, abrindo espaço para a ação de grupos radicais, tornando praticamente impossível manter uma política fiscal para tentar sustentar o nível de atividade econômica.

Ao contrário, os investidores perceberam que os governos estão com a dívida crescendo rapidamente e perdendo legitimidade e vão não só deixar de financiar os seus déficit, mas vão tentar desfazer dos títulos públicos com consequente elevação da taxa de juros. Na medida em que a política fiscal fica travada, podemos ter uma nova contração no nível de atividade, agravando o problema de déficit publico. Assim, somente quando a segunda contração for suficientemente profunda e prolongada a trava política da política fiscal será removida.

Qual o significado histórico da "Grande Recessão"? Em primeiro lugar essa é uma crise centrada nos Estados Unidos e Europa, portanto do núcleo do sistema global. Internamente, nesses países, foi a ascensão da plutocracia financeira, com a aliança do setor industrial, no início dos anos 1980 que permitiu a desregulamentação do sistema bancário e consequente introdução de inovações financeiras e explosão de crédito que gerou a crise. O poder do setor industrial já estava em declínio com a desindustrialização. Agora, tanto os Estados Unidos como a Europa, nas próximas décadas, deverão ter como prioridade absoluta a revitalização das suas economias, voltando-se para dentro eventualmente com medidas protecionistas, para enfrentar a ascensão da China.

Somado a isso, a perda de credibilidade e de legitimidade da sua classe dirigente, a governança global mudará radicalmente. Viveremos nas próximas décadas um interregno com a ausência de um centro que ditava as regras do jogo, exercia liderança política e ideológica e impunha um pensamento econômico.

A "Grande Recessão" será um longo processo de declínio da hegemonia americana, de um paradigma histórico e a gradual ascensão da China. Com o colapso de um paradigma, de um modelo econômico (uma variedade de capitalismo) que prevaleceu plenamente nas últimas três décadas, o que virá no seu lugar?

Melhoria nos EUA.


Editorial da FOLHA DE S. PAULO DE HOJE, comenta que "dados mais recentes sobre economia norte-americana são positivos, mas devem ser vistos com cautela, pois problemas graves persistem." Pelo menos, uma esperança nestes tempos de crises.  

O ano se inicia com renovada esperança de uma recuperação mais consistente da economia norte-americana. Com efeito, depois da decepção da primeira metade do ano passado, quando os EUA cresceram menos de 1%, muito abaixo das expectativas, os resultados relativos aos últimos seis meses têm sido vistos como sinal de alento.

O PIB teve alta de 1,8% no terceiro trimestre e espera-se algo próximo a 3,5% nos três meses finais de 2011. A geração de emprego também ganhou fôlego, atingindo a marca de 200 mil novas vagas em dezembro, o que permitiu uma queda da taxa de desocupação de 9,2%, em junho, para 8,5%.

Mesmo assim, se a estimativa do quarto trimestre se confirmar, os EUA terão crescido apenas 1,7% no ano passado, pouco mais da metade do prognóstico inicial. Espera-se uma taxa de expansão do PIB perto de 2% para este ano, o que não é um desastre, mas está longe de repetir o padrão habitual de recuperação -que apontaria para crescimento pelo menos duas vezes mais elevado que o atual.

A performance fraca de 2011 foi fruto de vários fatores. Com as informações disponíveis hoje, é possível concluir que o crescimento da primeira metade do ano viu-se comprometido por alguns choques em sequência, em especial a alta de 30% dos preços do petróleo, que reduziu a renda disponível dos consumidores, e o terremoto no Japão, que interrompeu os fluxos de produção global em cadeias industriais importantes.

Nos últimos meses, a despeito do agravamento da crise europeia, é possível que esteja em curso uma compensação desses efeitos, que, por sua natureza, são temporários. Convém, portanto, cautela para não tomar os dados recentes como prenúncio de vigor prolongado ou definitivo "descolamento" dos EUA da crise mundial.

Ao menos por ora, o peso das dívidas imobiliárias e a situação desfavorável dos balanços dos bancos e do bolso dos consumidores conspiram para conter uma aceleração mais forte.

Uma boa notícia para 2012 foi a renovação dos estímulos fiscais para a geração de novos postos de trabalho e a extensão do seguro-desemprego, aprovadas no fim do ano passado. O Congresso tem dois meses para confirmar se elas valerão para o restante de 2012. Se isso ocorrer, como parece provável, permitirá ao governo Obama pelo menos evitar um indesejável aumento do aperto fiscal.

Com este pano de fundo, o Federal Reserve (Fed, o banco central americano) tem mantido viva a possibilidade de estímulos adicionais e deverá reforçar perante o mercado sua disposição em manter os juros próximos de zero pelo menos até o fim de 2013.

Politicamente, a recuperação recente pode melhorar as chances de Obama nas eleições presidenciais de novembro. Mesmo com crescimento baixo, é possível que o alívio gradual das condições de emprego faça a diferença em uma eleição que, apesar da aparente inexistência de um oponente republicano de peso, se anuncia tensa e concorrida.

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