O Consenso de Washington não morreu, e o cumprimento das suas recomendações fiscais explica a resistência da América Latina, em especial Chile e Brasil, diante da pior crise global desde os anos 30. A afirmação é do economista britânico John Williamson, o "pai" do Consenso de Washington, um conjunto de recomendações de política econômica elaborado em 1989, com foco específico na América Latina. Segundo o economista, o governo Lula tomou decisões muito boas na área macroeconômica. Para ele, a postura fiscal rígida dos países latino-americanos os ajudou a atravessar a atual crise com custos relativamente moderados. Na recente reunião do G-20, em Londres, o primeiro-ministro Gordon Brown declarou que "o velho Consenso de Washington acabou". Williamson discorda, mas diz que são necessários ajustes. Williamson falou por telefone com o Estado na quinta-feira, de seu escritório no Instituto Peterson de Economia Internacional, em Washington:
A reunião do G-20 em Londres aponta para um novo consenso econômico global. O Consenso de Washington acabou?
Não, as nossas recomendações ainda valem. Esse novo consenso tem uma parte em comum com o que eu venho dizendo, mas também vai além. Eles falam no crescimento ser compartilhado, que haja prosperidade não apenas para os ricos e poderosos, mas que seja disseminada e chegue aos menos privilegiados. Isso é muito importante. Eles também falam sobre regular o sistema financeiro, e certamente isso não é algo que estivesse no Consenso de Washington inicial. Eu gostaria de ter colocado pelo menos alguma menção, mas nem isso eu fiz. Esse é um acréscimo merecido.
Que outros pontos do comunicado de Londres não estão no Consenso de Washington?
Eles mencionam a importância de instituições globais fortes, o que não estava no consenso original. Mas, nesse caso, eu tenho uma desculpa bem melhor, porque estava escrevendo para a América Latina, uma região específica, e não para o mundo todo. Não haveria porque falar de instituições globais naquele contexto. O ponto final que eles enfatizaram, e que também não consta do Consenso de Washington, é o meio ambiente, algo que realmente entrou na agenda nos últimos anos.
A regulação não entrou no Consenso de Washington original?
É até um pouco embaraçoso, porque um dos tópicos (do documento original) era sobre desregulação. Mas eu estava me referindo à desregulação do tipo que elimina barreiras à entrada e saída de mercados, e não em desregulação financeira. Eram temas como os empresários não encontrarem diversos obstáculos para demitir funcionários, o que os torna menos inclinados a contratar. Ou desregulação em áreas como transporte por caminhão, ferrovias, aviação, como ocorreu nos Estados Unidos nos últimos vinte anos.
Mas o que havia sobre o setor financeiro?
Fui bastante específico em falar de liberalização do sistema financeiro, e é provavelmente verdade que, se mantivéssemos um setor financeiro completamente regulado, não haveria acontecido uma crise desse tipo. Eu ainda acho que o melhor sistema envolve liberalização mas, junto com isso, uma boa supervisão do sistema financeiro, e regras, regulação. Posteriormente, eu reconheci a importância do tema, e afirmei que, se é para liberalizar o sistema financeiro, tem de regular também. Eu disse que ter uma sem a outra é um convite a problemas.
De qualquer forma, parece ser consensual agora que a regulação insuficiente, que foi endossada pelo establishment econômico-financeiro global, é uma das grandes causas da crise.
Claro que houve uma falha. Com o benefício do olhar retrospectivo, vemos que foi um erro dar tanta liberdade. Algumas coisas que aconteceram no sistema financeiro foram claramente excessos. Acho certo apertar a regulação, mas não é preciso também usar os princípios corretos. Não se trata apenas de coordenação internacional, da questão do pagamento a banqueiros, mas também de impedir que os bancos se tornem grandes demais. É muito pouco saudável ter bancos "grandes demais para falir". Também é preciso ter uma supervisão prudencial macroeconômica. Tradicionalmente, a ênfase é inteiramente na supervisão prudencial microeconômica, e isso não está certo, porque os bancos são atingidos por choques similares, simultâneos. Havia uma suposição implícita na regulação de que isso não ia acontecer, mas aconteceu.
Em que pontos o comunicado de Londres coincide com o Consenso de Washington?
O primeiro é a ideia de que a globalização é uma coisa boa, e de que precisamos manter o comércio internacional fluindo, e não voltar para uma situação de diversas economias fechadas. Isso está logo no começo. O comunicado também foi muito explícito em dizer que a maioria das economias que fazem parte do G-20 é baseada em princípios de mercado, e eles veem isso como importante. Esse era um dos pontos que eu mais quis enfatizar no Consenso de Washington.
Por quê?
Porque se trata de uma grande mudança de pensamento. No período inicial do pós-Guerra, havia um argumento de que as pessoas em países em desenvolvimento não respondiam a incentivos econômicos da mesma forma que nos países desenvolvidos, e que, então, um tipo de pensamento econômico diferente tinha de ser usado. Eu acho que isso está errado, e não penso que o comunicado de Londres tenha embarcado neste caminho.
Mas a recomendação de aumentar gastos públicos para sair da recessão não contradiz a defesa de disciplina fiscal pelo Consenso de Washington?
Não, o comunicado menciona duas vezes a importância de se alcançar sustentabilidade fiscal no longo prazo, o que eu defendia para a América Latina. É claro que é apropriado ter políticas fiscais expansionistas neste momento, no meio de uma recessão, mas também é apropriado torná-las menos expansionistas à medida que o tempo passa e essas economias se recuperam.
O Consenso de Washington está ligado à agenda liberal de Margaret Thatcher e Ronald Reagan?
Bem, a intenção era de buscar um consenso, e, portanto, determinar o que tinha sobrevivido em termos de ideias ao final daquele período. Em relação a Margaret Thatcher, foi importante que ela tenha introduzido e tornado popular a privatização. Acho que ela estava certa. Mas o Consenso de Washington nunca foi um apoio generalizado às ideias de Reagan e Thatcher.
Como o sr. vê a América Latina e o Brasil diante da crise?
Eu realmente acredito que diversos países latino-americanos seguiram razoavelmente bem a parte macroeconômica do Consenso de Washington, especialmente o item relativo à disciplina fiscal. O governo Lula, por exemplo, tomou decisões muito boas na área macroeconômica. E eu acho que essa postura fiscal dos países latino-americanos os ajudou enormemente a atravessar a atual crise com custos relativamente moderados. É claro que o Chile é a estrela, mas aquilo é verdadeiro também em relação ao Brasil - e mesmo, até certo ponto, à Argentina. Já diversos países da Europa Oriental, cujas políticas fiscais divergiram fortemente da disciplina recomendada no Consenso de Washington, estão sendo muito mais duramente atingidos nesta crise.
Quer dizer que, no final das contas, a América Latina implementou o Consenso de Washington?
Bem, eu não acho que todos os países, e aí incluo o Brasil e, obviamente, a Argentina, tenham ido tão bem em relação aos temas de aperfeiçoamento da economia de mercado, mas isso é mais relevante para o crescimento de longo prazo do que para a capacidade de resistir a uma crise no curto prazo. A liberalização comercial, por exemplo, foi feita de uma forma infeliz, com a conta de capital liberalizada (liberalização dos fluxos de capital) simultaneamente. Então, houve esse fluxo de capital que tendeu a tornar as exportações não competitivas (pela valorização do câmbio), e isso foi um erro. E há muitas falhas na educação, das quais tratamos na revisão do Consenso de Washington.
As mudança no FMI decididas em Londres estão em linha com o que o sr. defende?
Bem, realisticamente, ninguém esperava que eles concordassem um dia sobre como reformar o FMI. Mas, em linhas gerais, fiquei surpreso com o quanto o comunicado foi na direção que venho favorecendo. Por exemplo, na questão de escolher o diretor-gerente, com base no mérito, e não da geografia, não tendo mais de ser de algum país em particular.
E em relação ao aumento dos recursos para o FMI?
Sou a favor e acho que ajuda muito na situação atual, mas não escrevi especificamente sobre isso. Uma questão que não foi resolvida, na minha opinião, é que os novos empréstimos, com poucas condicionalidades, são para países que sofrem fugas de capital ou paradas súbitas da entrada de capital. Isso deixa de fora todos os países dependentes de commodities, e que podem ter problemas no balanço de pagamentos (no caso de os preços das commodities caírem muito), sem ser por culpa deles. Já houve empréstimos desse tipo, mas, desta vez, uma falha foi não reativar este instrumento.
O que o sr. acha do plano de Tim Geithner (secretário do Tesouro americano) para sanear os bancos do país?
Os americanos pagarão um preço alto por serem tão avessos à possibilidade de nacionalização temporária. Ninguém iria querer um sistema bancário permanentemente estatal, mas provavelmente a melhor coisa seria permitir que alguns bancos sejam nacionalizados temporariamente, e serem privatizados de novo no futuro. Não acho que isso represente uma ameaça tão aterradora, a ponto de se pagar qualquer preço para evitá-la - e é assim que encaro a abordagem do Geithner.